GTNM

 
 
 

PROJETO CLÍNICO

 O Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e sua Equipe Clínico-Jurídica

Carta para o International Rehabilitation Council For Torture Victims – IRCT – 2º semestre de 2014

Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras revezem a história do outro; não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, e inventar o presente.  (GAGNEBIN, 2001, p. 93)

Falar da Equipe Clínico-jurídica do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ), fundado em 1985, por ex-presos políticos, familiares de mortos e desaparecidos políticos e pessoas que se indignam com a prática cotidiana da tortura, é falar de questões que, ainda hoje, continuam sendo reprimidas pelos diferentes governos pós-ditadura civil-militar. Questões referentes, dentre outras, ao esclarecimento e responsabilização dos crimes cometidos pelo terrorismo de Estado. Cabe ressaltar também a luta desenvolvida no sentido de escrever e trazer para toda a sociedade as histórias até hoje proibidas e que, agora, muito timidamente, passam a fazer parte dos livros oficiais. Histórias e memórias negadas, silenciadas dentro de um processo de produção de esquecimento. Não podemos ignorar que o processo de construção da memória coletiva tornar-se um território de disputas, confrontos e lutas. Território do qual fazem parte os embates cotidianos levados pelo GTNM/RJ.

Quatro anos depois de sua criação, em 1989, a Diretoria do GTNM/RJ percebeu a necessidade de promover assistência clínico-jurídica aos atingidos pelos crimes da ditadura. À época, não havia qualquer política de assistência por parte do Estado.

Somente em 1992, com o primeiro subsídio advindo do Fundo Voluntário das Nações Unidas para as Vítimas de Tortura, iniciou-se uma outra frente inédita de trabalho do GTNM/RJ: a Equipe Clínica Tortura Nunca Mais.

Posteriormente, em 2000, surgiu o apoio jurídico voltado para o mesmo público já assistido por médicos, psicólogos e reabilitadores físicos. Neste período, tivemos o apoio financeiro, em anos diferentes, da Comunidade Europeia, da Anistia Internacional Sueca e da Fundação OAK da Dinamarca , além do Fundo da ONU.

Desde 2001, com a solidariedade do International Rehabilitation Council For Torture Victims – (IRCT), realizamos diferentes atividades anualmente no dia 26 de junho, como parte da luta lembrando o “Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura”, todo o dia 26 de junho que, em nosso país, foi instituído como “Dia Internacional de Luta Contra a Tortura”. Em todos estes anos realizamos debates, seminários, mesas redondas e diferentes exposições de fotografias, objetos, depoimentos…

O GTNM/RJ, ao longo dos 29 anos de existência, tem se caracterizado por sua autonomia e independência em relação aos partidos políticos e outras organizações da sociedade, especialmente as vinculadas às diferentes instâncias governamentais, não recebendo qualquer subsídio advindo deles. Este dispositivo ético-político nos tem possibilitado avaliar constantemente nossas práticas no sentido de afirmar, a todo momento, nossa autonomia e independência.

Em 2012, avaliando a realidade brasileira e o contexto internacional, a Diretoria do GTNM/RJ resolveu iniciar a desativação de seu Projeto Clínico-jurídico de apoio às pessoas atingidas pela violência do Estado ontem e hoje.

No Brasil, governos civis pós-ditadura fortalecem e gerem o capitalismo neoliberal , promovendo acordo políticos que vêm capturando muitos movimentos sociais. São realizados pactos com forças econômicas e militares que adubaram, executaram e fortaleceram o golpe civil-militar de 1964, que financiaram o aparato repressivo da ditadura e hoje, ainda, encontram-se presentes no cenário político de nosso país. Tentam, no momento – especialmente após decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA que, em 2010, condenou o Estado brasileiro a investigar, esclarecer e responsabilizar seus agentes – nos impor uma Comissão Nacional da Verdade extremamente perversa e limitada que caminha, muito lentamente, no levantamento de alguns fatos. Fatos estes que já vem há anos sendo pesquisados, sem qualquer apoio governamental, por movimentos de familiares e ex-presos políticos. A Comissão, na realidade, tem resumido a sua atuação tornando oficiais tais pesquisas e seus resultados, acrescentando muito pouco ao assunto já pesquisado. Daí, a contínua análise crítica que o GTNM/RJ vem fazendo em relação a estas Comissões da Verdade e aos seus apelos de uma maior participação de nossa parte. O sigilo dos procedimentos desta Comissão e o silêncio imposto como metodologia nos faz crer que não há uma vontade política do Estado brasileiro de repensar de forma coerente o terror do Estado a que nós, brasileiros, fomos submetidos, ao longo da ditadura. O mesmo ocorre em relação à Lei de Anistia. O precedente de “crime correlato” referindo-se à anistia, também, para os militares torturadores, interpretado pelo Supremo Tribunal de Justiça, a despeito de todas as contendas judiciais ao longo desses mais de 30 anos, nos faz acreditar que o Estado brasileiro deseja seguir o processo histórico silenciando, esquecendo e conciliando com os interesses daqueles que produziram, financiaram e conduziram o terror do Estado.

No cenário internacional assistimos, na última década, à redução sistemática, continuada e generalizada das fontes de financiamento e o aumento das exigências burocráticas.

Muitos debates internos ocorreram, especialmente ao longo dos anos de 2010, 2011 e 2012, no sentido da aceitação ou não de financiamentos governamentais para a continuidade do atendimento clínico-jurídico. O GTNM-RJ manteve a posição de não aceitar qualquer apoio financeiro por parte do governo. Manteve-se a prática da autonomia e independência, que nos tem garantido uma postura de constante análise crítica em relação ao cenário político brasileiro. Temos, portanto, uma posição crítica, autônoma e divergente a todos os diferentes governos pós-ditadura e às suas propostas de cooptação de entidades e movimentos sociais em relação à luta por “memória, verdade e justiça”. O GTNM/RJ sobrevive hoje graças a doações de amigos e companheiros.

A desaceleração do Projeto Clínico-jurídico vem se dando, de modo bastante cauteloso, ao longo dos anos de 2013 e 2014, quando se prevê seu término.

Foram 23 anos de assistência clínico-médico-psicológica e de reabilitação física e 14 anos de apoio jurídico de maneira ininterrupta. Cerca de mil e duzentas pessoas foram atendidas por este projeto pioneiro no Brasil. Projeto que apontou a indissociabilidade entre clínica e política, cujo enfoque teórico inovador permitiu que operássemos sobre os efeitos do modo de subjetivação hegemônico no capitalismo neoliberal que individualiza tudo, fragilizando o coletivo.

Assim, o GTNM/RJ continua apontando cotidianamente os acordos que tentam nos impor e que dão continuidade à política de acobertamento, silenciamento e esquecimento inaugurada pelo terrorismo de Estado em nosso país. Processo de reparação bastante atrasado e muito incipiente em relação aos demais países latino-americanos. Apenas se inicia de modo frágil e tímido tendo em vista os acordos realizados com as forças econômicas e militares.

Apesar do poderio do capitalismo e de todos os acordos feitos, continuamos lutando e pressionando para que se implemente uma Comissão Nacional da Verdade, Memória e Justiça! Que sejam abertos e divulgados todos os arquivos da ditadura civil-militar; que se investigue, esclareça, torne público e responsabilize os crimes cometidos em nome da “segurança nacional”. O acobertamento e o esquecimento perpetuam as violações, como podemos ver de forma evidente e estarrecedora. Não podemos esquecer, portanto, os crimes que ainda hoje continuam ocorrendo em nome da “defesa e segurança da sociedade e de seus cidadãos de bem”.

Hoje, temos em nosso país, pessoas mortas, presas, torturadas, desaparecidas e vivendo na clandestinidade em função da violência e do terror do Estado. Estas pessoas são, em sua maioria, pobres, negros, moradores de favelas, defensores de direitos humanos e ativistas das manifestações. Estamos vivendo, amargamente, a produção do medo diário, da vigilância nas redes sociais, escutas em celulares, invasão absurda e inconstitucional da vida privada.

Prerrogativas legais como a presunção de inocência, liberdade de manifestação, liberdade de circulação e de expressão estão sendo cotidianamente abolidos em nosso país, por meio das prerrogativas legais da exceção ou até mesmo, por vezes, inconstitucionais. Estes atos estão sendo denunciados nos diferentes fóruns nacionais e internacionais.

Por nossa autonomia, independência e crítica frente às instâncias governamentais brasileiras, temos sido procurados, a partir de junho de 2014, por alguns manifestantes presos e/ou perseguidos e seus familiares para atendimentos psicológicos emergenciais. A situação é de medo e de terror, nos fazendo reviver alguns momentos do período da ditadura civil-militar. Dentro do possível, estamos realizando tais atendimentos emergenciais neste final do Projeto Clínico-jurídico Tortura Nunca Mais-Rio de Janeiro.

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 COMO SE DESENVOLVIA O PROJETO ATÉ O FINAL DE 2014:

Apresentação

O Projeto Clínico-Jurídico Tortura Nunca Mais, desde 1991, vem desenvolvendo um trabalho – de assistência clínica-médico-psicológica, de reabilitação física e social e, posteriormente, de apoio jurídico – gratuito e voltado para as pessoas atingidas pela violência do Estado, com apoio anual do Fundo das Nações Unidas para as vítimas da Tortura recebendo, em anos posteriores, apoio da Comissão Europeia, da Anistia Internacional Sueca e da Fundação OAK. Hoje recebemos apenas um pequeno apoio do Fundo das Nações Unidas.

O Grupo Jurídico Tortura Nunca Mais, desde 2001, atende de forma sistemática os atingidos pela violência do Estado, numa perspectiva de construção de apoio integral, unindo-se à atuação dos profissionais da clínica. Presta assessoria jurídica aos que se dispõem a responsabilizar o Estado pelas violações do passado e da atualidade, orienta os interessados na elaboração de processos de reparação perante a Comissão de Anistia e defende o GTNM/RJ, quando das tentativas de intimidação feitas por ex-torturadores que a entidade tem denunciado. Atualmente, pela diminuição gradativa das verbas, o grupo jurídico apenas tem defendido o GTNM/RJ.

Tem direito à assistência do Projeto Clínico-Jurídico pessoas que, comprovadamente, passaram por situações de violência e/ou tortura perpetradas por agentes do Estado e seus familiares.

Para serem atendidos pelo Projeto Clínico, os interessados deverão inscrever-se na sede do GTNM/RJ, através dos telefones( 21) 2286-8762 ou (21) 2538-0428, no sentido de marcar entrevista com a Coordenação do Projeto.