A Verdade sob os Refletores
Victória Grabois*
De 1972 a 1974, do sul do Pará ao norte de Goiás, hoje estado de Tocantins, aconteceu o movimento conhecido como a Guerrilha do Araguaia. Meu pai. Maurício Grabois era o comandante. Também fazia parte da Comissão Militar meu marido, Gilberto Olímpio Maria. À frente de um dos três destacamentos estava meu irmão André Grabois. Todos militantes do Partido Comunista do Brasil.
No total, eram 69 cidadãos e cidadãs, estudantes, professores, médicos, economistas, engenheiros e operários, mais os camponeses que aderiram ao movimento. Dez sobreviveram. Todos os demais – em sua maioria jovens que saíram de suas casas e não disseram para as famílias para onde iriam – desapareceram.
Quando surgiram as notícias do ataque do exército aos destacamentos, as mães saíram em busca de seus filhos; elas e todas as outras mães dos países do Cone Sul que procuravam notícias ou os corpos dos filhos e filhas que militavam em organizações políticas. No Brasil, no início, a busca dessas mulheres era clandestina e individual. Com o tempo, ainda isoladas e sem visibilidade, formaram uma rede. O movimento pela anistia fez significativos avanços e as levou à realização de congressos. O primeiro em São Paulo. Em 1980, na Bahia, decidiram seguir em caravana até a região da guerrilha para saber, de fato, o que havia acontecido.
Eu estava lá e lá comemorei, emocionada, meu aniversário. Durante 15 dias, vasculhamos o passado e constatamos que na população local a coragem e a solidariedade daquele grupo ainda estava viva. Fomos recebidos como celebridades e houve uma localidade em que a caravana foi saudada com fogos de artifício. Com farto material gravado e grande número de informações foi divulgada uma Carta Denúncia à nação. 22 famílias entraram com uma ação contra o Estado brasileiro para saber a localização dos corpos de 25 guerrilheiros. O governo brasileiro impetrou 16 recursos e só em 1996 fez a sua primeira incursão oficial à região.
Hoje, dos 59 que desapareceram apenas Maria Lúcia Petit e Bérgson Gurjão Farias foram enterrados. Ambos os casos frutos de buscas e descobertas dos familiares, com o apoio da Igreja Progressista, da OAB Nacional e dos movimentos de direitos humanos. A morosidade da Justiça brasileira levou a uma ação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, tendo o Centro pela Justiça e o Direito Internacional-CEJIL como o peticionário e como co-peticionários o grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos de São Paulo.
Dias 20 e 21 de maio próximos haverá o julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos – OEA, em São José da Costa Rica, do primeiro julgamento internacional contra o Brasil por crimes cometidos durante a ditadura militar brasileira: caso Gomes Lund e outros v. Brasil, também conhecido como Guerrilha do Araguaia.
Lutamos na clandestinidade, enfrentamos todo tipo de tortura moral e finalmente fomos mais uma vez vítimas da decisão inaceitável do Supremo Tribunal Federal de estender a lei de anistia aos agentes públicos e privados que perpetraram crimes comuns em nome da ditadura militar. Para o STF são crimes conexos aos crimes políticos.
Os agentes do Estado que sequestraram, torturaram e desapareceram com inúmeros brasileiros cometeram crimes de lesa-humanidade. Crimes conexos cometeram aqueles que, como eu, viveram durante 16 anos com nome falso. Falsidade ideológica, isso sim é um crime conexo, como única forma de sobreviver, senão estaria morta ou desaparecida.
O Brasil, hoje uma sociedade democrática, regida pelo Estado de Direito, signatário de pactos e convenções internacionais, estará finalmente sob a luz dos refletores, chamado à responsabilidade pela afronta à nação brasileira e pelo desrespeito às leis internacionais. Não queremos revanche, queremos justiça. O país precisa conhecer o seu passado e ser responsabilizado pelos crimes que cometeu para que a violência de Estado seja definitivamente uma página virada da História. Está no cenário internacional a última esperança.
*Victória Grabois é professora e vice-presidente do GTNM/RJ
Publicado no jornal O Globo de 20/05/2010
O Brasil e a Corte Interamericana de Direitos Humanos
O Caso do Cadete Marcio Lapoente da Silveira
João Tancredo*
Sob o título “Oficial torturou e impediu socorro”, o jornal O Dia, de 26 de agosto de 1991, resume os fatos sobre o tema que ora tratamos:
“O cadete Lapoente não passou pelo primeiro dos sete dias previstos do Estágio de Sobrevivência na Selva da Aman. No dia 9 de outubro de 1990, ele acordou às 03h30, tomou café, equipou-se para o estágio (mochila de 6kg, fuzil de 7kg, coturnos, cinto com apetrechos, faca e cantil) e, às 5h, iniciou a caminhada de 4,5km, em passo acelerado, até o campo de exercícios militares.
No final da caminhada Lapoente sentiu-se mal e parou. Alguns cadetes foram socorrê-lo, mas o capitão De Pessoa (na época, tenente) não permitiu. O oficial passou a xingar o cadete até que ele se levantasse e empurrou-o pelas costas.
Caído de bruços, o cadete recebeu novas ordens para levantar. Recebeu vários chutes do capitão nas costas e só depois da agressão foi socorrido por alguns cadetes que lhe deram água e sal. Logo que recuperou os sentidos, o cadete foi forçado pelo capitão a subir e descer seis vezes uma rampa e iniciar exercícios de solo. Lapoente não resistiu e desfaleceu no início da série de solo.
Como ele, vários outros cadetes passaram mal, como atesta o boletim médico do dia. Mas o capitão De Pessoa pegou Lapoente como “exemplo”, como o próprio oficial disse à tropa. Diante do coronel Jeffe, supervisor do estágio, e dos médicos-militares, o capitão fez vários cortes a faca no braço do cadete inconsciente e jogou areia sobre os ferimentos, simulando, segundo o próprio oficial, um formigueiro. Como Lapoente não levantou, o capitão autorizou que os médicos o levassem.
Às 9h, sem sentidos, com febre, o cadete foi levado para o hospital da Aman, onde permaneceu em uma maca por mais de uma hora, sem socorro. Sem saber o que fazer, os médicos (todos recém-formados) decidiram transferir Lapoente, de ambulância, para o Hospital Central do Exército, em Triagem. O cadete morreu na ambulância, em algum lugar da Via Dutra, entre Resende e o Rio de Janeiro”.
O insólito e revoltante fato ensejou a instauração de processo penal contra o autor das violências que, apesar da substancial prova existente, em julgado realizado por seus colegas de farda, verificou-se a sua absolvição por maioria, posto que a única juíza de carreira, Sheila de Albuquerque Bierrenbach, ficou vencida.
O recurso apresentado contra esta decisão, mereceu por parte do Superior Tribunal Militar, em sessão secreta (não obstante o princípio constitucional da publicidade dos atos, com expressa vedação a julgamentos secretos, artigo 93, inciso IX), uma condenação a pena por “maus tratos à inferior hierárquico”.
Muito embora, a família busque até hoje a condenação do oficial De Pessoa em sede criminal, restava ainda a via da ação indenizatória. O que foi feito: no longínquo ano de 1993 foi proposta uma ação contra a União e o oficial do Exército Brasileiro.
O Calvário da Família Lapoente não tem fim. No dia 13 de novembro de 2.000 foi proferida uma sentença pelo juiz da 16ª Vara Federal excluindo o oficial da ação indenizatória e condenando a União a ressarcir os pais e o irmão do cadete morto apenas e tão somente nas despesas realizadas com o luto e o funeral. Nada mais.
Dita sentença mereceu por parte do jornalista Fritz Utzeri, do Jornal do Brasil, matéria com duras e merecidas críticas ao julgamento. O juiz insatisfeito com o artigo moveu ação de indenização contra o jornalista.
Sebastião, o pai, (nosso querido Silveira que sucumbiu à dor e à longa espera), Dona Carmem, a mãe (valente companheira) e Claudio, o irmão, apresentaram recurso ao Tribunal Regional Federal no dia 18 de dezembro de 2.000.
Mais seis anos se passaram com o processo dormitando nas empoeiradas prateleiras do judiciário, até que no dia 21 de novembro de 2.006, ocorreu o julgamento com a condenação da União e o que mais importava para a família e para a sociedade brasileira - a condenação do oficial Antonio Carlos de Pessoa ao pagamento de uma pensão mensal, a contar do evento até a data em que o cadete completaria 71 anos, com base no soldo de tenente - e mais a condenação ao pagamento de danos morais, cálculo fundado no valor que o cadete receberia da data do fatídico evento até o primeiro mês em que a pensão fosse paga.
Embora dispensável, mas para não se perder o fio da meada, o oficial condenado e a União apresentaram recursos contra a decisão. Recursos estes, também dispensável dizer por sua obviedade, ainda pendem de julgamentos pelos tribunais superiores.
Como outros outubros virão, e nossa esperança é de que venham carregando manhãs plenas de sol e de luz, foi formulado junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), pedido de condenação do Estado Brasileiro pela não punição criminal do causador direto do evento criminoso, bem como pela injustificada demora na solução das ações, o que remeteu a investigação sobre a morte do Cadete Lapoente para a Corte Internacional. O detalhamento do caso na Comissão pode ser visto através do endereço www.cidh.org/annualrep/2008port/Brasil1342.04port.htm.
O acolhimento da denúncia pela Comissão resultou, no mês de maio passado, na realização de uma reunião com Dona Carmen Lapoente, mãe do Cadete, integrantes do GTNM, procuradores da União, militares (do exército) representando o Ministério da Defesa, representante do Ministério das Relações Exteriores, além de representantes da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, para a realização de um acordo, uma solução amistosa, a fim de garantir a reparação dos danos causados aos familiares, bem como para prevenir novas violações.
No mesmo acordo, o Estado Brasileiro reconhece sua responsabilidade internacional pela grave violação do direito à vida e da obrigação de garantir e respeitar os direitos consagrados na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação ao Cadete Lapoente.
Neste acordo há, ainda, a expressa previsão do reconhecimento internacional pelo Estado Brasileiro de sua responsabilidade pela morte do Cadete Lapoente, através de atos que efetivamente enunciem tal reconhecimento, a saber: cerimônia pública a ser realizada com a intermediação do Exército Brasileiro, e cerimônia militar na Academia Militar das Agulhas Negras para inauguração de placa em homenagem aos outros cadetes falecidos no curso de formação de oficiais.
Conclusão: a força da Família Lapoente, somada à contribuição dos camaradas de luta permanente contra a tortura, conseguiu, 20 anos depois da morte do pranteado Márcio Lapoente da Silveira, impedir que mais um caso de barbárie praticado fosse lançado na vala comum da impunidade e do esquecimento.
Não é o melhor, mas é um bom começo.
João Tancredo é advogado
Presidente do Instituto de Defensores de Direitos Humanos – DDH
RJ 11/06/2010
Imagens e Símbolos de uma América Latina Cooperativa
Fernando Mamari
“Você se lembra daquela noite?
Tão escura e fria.
Eu me lembro,
Não a vivi, mas carrego seu medo.
Alguns dizem que a cegueira da noite escura deu lugar a um dia tão claro que não nos deixa ver.
Outros afirmam que ainda é noite e muito temos que temer.
Eu prefiro acreditar na alvorada.
E sonhar com a esperança de um novo dia.”
Este filme nasce da resistência. As imagens, que se tornam símbolos nessa América, são frutos das lutas contra as ditaduras da segunda metade do séc. XX e de outras barbáries anteriores. Assim, segue a argumentação de Edurado Galeano sobre a fundação desta região do continente americano. A divisão internacional do trabalho, a especialização dos países em ricos ou pobres, os dentes na garganta, o livre comércio, nossa comarca no mundo: a América Latina. Ao passo da narrativa, Potosi, a ex-motanha de prata, hoje formigueiro humano, cemitério de índio vivo na Bolívia. No período colonial, Potosi esteve entre as três maiores cidades exportadoras de minerais preciosos das Américas para Europa. Dela surgiu a expressão de que se poderia construir uma ponte da América à Europa com o metal saído de suas entranhas.
Uma menina canta sobre sua comunidade, uma senhora se afirma piqueteira, o filme anuncia seu princípio norteador. A câmera não acompanha o cotidiano dos personagens, vive seus cotidianos, participa de seus sentimentos, treme, sai de foco, sorri e sente medo. O filme recomeça e voltamos à narrativa sobre o mosaico de imagens.
A partir deste momento o filme se divide em três grandes capítulos, muito embora isso não seja explicitado em nenhum momento. O primeiro capítulo trata da resistência, a luta direta, corporal, de sangue e carne. Manifestações, repressões, o contraste entre o lixo e o consumo, as dificuldades de qualquer empreendimento coletivo em um mundo individualista e desigual. Um cazuza latino americano. Tudo que se pratica quando se atinge o último recurso. Uma alusão à noite fria e escura, às ditaduras de ontem que continuam a se fazer presentes no hoje.
“Todas essas luzes,
Todo o consumo.
Para que?
Para quem?
A onde isso nos levou?
Estamos vivendo melhor?
A carne
O sangue
O corpo
A resistência
O último recurso
O momento em que se agarra o mundo com as próprias mãos e disse:
Não.”
No segundo momento, não existem grandes acontecimentos ou ações, mas o filme é fundado em um movimento ininterrupto. Nenhum personagem aparece mais de uma vez, contudo é como se cada um preparasse a chegada do próximo, como se nenhum personagem desaparecesse do filme, estando sempre presente na fala do outro. Sem uma ligação aparente, mas separados por quilômetros de distância, os personagens constroem o movimento da imagem ou realizam, em seu conjunto, uma imagem-movimento.
A opção por não menção dos nomes dos personagens, seus lugares de ação ou explicações sobre suas organizações provoca uma suspensão destes de seus tempos-espaços específicos, fazendo com que eles existam fora de suas histórias, fora de suas narrativas locais para a construção de um conjunto de agenciamentos. Assim, o movimento é elevado a sua máxima potência, consolidando uma montagem reconhecida através da imagem-tempo. Fragmentação de uma narrativa linear, supressão das informações que constituem a ação. A imagem é o único elemento potente. Cada imagem, o conjunto das imagens, um mosaico, apenas movimento e tempo.
“Às vezes duas pernas me parecem pouco.
Preferia ter as assas do condor e voar alto.
Tantas pessoas, tantos lugares, tantos grupos.
Será que se conhecem?
Ou são expressões dispersas de um mesmo movimento.
Qual o tamanho da onda?
Qual a força de seu impacto?
Quantas sementes ficaram no canto do jardim?”
Fábricas, plantações, manifestações artísticas, a produção dos povos para além da resistência. A liberdade para criar de uma população quando supera ou vence a luta imediata pela vida, terra ou trabalho. O começo de uma construção simbólica gerada a partir de uma forma nova de vida e relação social. Bioconstrução, agricultura orgânica, autogestão, cooperação produtiva, bandeiras, imagens e símbolos da América dos movimentos sociais. “Da terra se volta ouvir o campesino gritando. A terra deve ser de quem a esta trabalhando.” “Para o povo, o que é do povo. Porque o povo assim o ganhou”.
“Aymaras, Quéchuas, Mapuche, Tupi, Guarani, Jes, Pajés, Candobe, Quilombo, Mucambo, Capuera, Pachamama.
Todos os tambores batem no meu coração.
Todos os instrumentos de sopro movem a minha alma.
Valeu a pena.
Temos novas árvores.
Existem novos frutos.
Somos filhos dos que lutaram,
E guerreiros também somos.”
No terceiro momento, demonstramos o processo educacional gerado a partir da construção desse modelo de relações sociais. As formas de cooperação produtiva são ensinadas nas escolas e preparam as futuras e presentes gerações. A palavra cooperação e o hábito de participação em ações coletivas passam, desde cedo, a fazer parte do imaginário de possibilidades das crianças. Signos são apresentados e símbolos transmitidos. O filme termina com as crianças:
“Não se sabe até onde uma imagem pode nos conduzir.
Quando um signo se transforma em símbolo,
E uma idéia passa a ser uma possibilidade.
Quando as crianças já não são o futuro,
Mas o presente.”
A imagem, em si, contém a força da denúncia, numa estética que surge a partir da inserção da imagem na denúncia. Este filme busca a criação de uma estética. Contudo, esta já não é mais a da fome, do lixo ou das denúncias, mas a estética da cooperação. Uma tentativa de expressar, em imagens, a estética que emerge a partir de relações solidárias e capazes de reconstruir uma utopia.
Para encomendar o filme, entre em contato
juliacfranca@gmail.com ou franciscoafnetto@gmail.com
Euclides da Cunha e a Chacina Fundacional da República Brasileira
Vera Malaguti Batista*
Nilo Batista sempre tratou Canudos como a chacina fundacional da República brasileira. Roberto Lyra, em seu Direito Penal Científico incorpora Euclides da Cunha na história da Criminologia brasileira. Considerando a minha intervenção aqui como um parênteses criminológico, peço licença para uma reflexão sobre essa presença de Euclides na Interpretação da questão criminal brasileira.
Ao trabalhar o medo como fio da história dos discursos criminológicos, me aproximei do olhar periférico do búlgaro Tzvetan Todorov sobre a conquista da América. Ele a descreveu como o encontro da civilização européia com o “outro” exterior no momento em que a Espanha repudiava seu “outro” interior, na vitória sobre os mouros e na expulsão dos judeus. O genocídio da população americana e a liberação total da crueldade obedecem a um duplo movimento de desqualificação do “outro” e da subordinação de tudo e de todos ao fetiche do ouro. Na descoberta da América a Europa expulsava a heterogeneidade e a introduzia irremediavelmente.
O positivismo aparece como discurso político e científico na virada do século XIX, no emblemático momento histórico do fim da escravidão e implantação da República. Ele é também uma grande permanência no pensamento social brasileiro, seja na criminologia, na sociologia, na psicologia ou no direito. Muito mais do que uma escola de pensamento, constitui-se numa cultura. Ele representou algumas rupturas na questão criminal pensada pelos liberais iluministas. No entanto ele representa uma atualização, um continuum e até uma sofisticação dos esquemas classificatórios, hierarquizantes, produzidos pela colonização do mundo pelo capital. Na República brasileira ele representou uma vanguarda laicizante naquilo que Gizlene Neder denominou de liberalismo radical, na contramão das oligarquias associadas ao poder da Igreja Católica 1. À esquerda e à direita encontram-se positivismos. Euclides era um homem do seu tempo.
Uma das principais lições que obtive com o livro do argentino Anitua (Histórias dos pensamentos criminológicos), foi compreender o positivismo como uma ideologia surgida do medo das revoluções populares, dirigida à desqualificação da idéia de igualdade. As classificações hierarquizantes serviam para ordenar os problemas locais (pobres e indesejáveis) e os problemas gerais (povos e culturas periféricos). Como pensamento do século XIX, só poderia surgir, como conseqüência do grande internamento, descrito por Foucault. As disciplinas paridas pelo grande internamento produziram o sistema penal. É neste momento histórico que a prisão converteu-se na pena mais importante do mundo ocidental.
A revolução industrial, a todo vapor, demandava a exploração intensa da mão-de-obra. A prisão, a partir do modelo das casas de correção, é o dispositivo disciplinador subalterno à fábrica, como diriam Melossi e Pavarini 2. A prisão e a polícia se instituem, se constituem para o controle social da mão-de-obra, contra as movimentações, sedições e revoltas populares. A própria idéia de polícia surge como polícia médica; na perspectiva biopolítica de uma governamentalidade das populações que vai engendrar, entre outras coisas, o higienismo. A concentração de pobres na cidade vai ser lida pela sua patologização, pelas pretensões corretivas e curativas. O controle social vai se estender da prevenção às reabilitações. O ideal reabilitador vai se utilizar do trabalho como medida ressocializadora. Os tratamentos vão dar conta dos seres humanos recuperáveis e tratar de neutralizar os irrecuperáveis. A humanidade divide-se agora entre os normais e os anormais, a loucura e o crime serão alvo de terapêuticas sociais. Se pensarmos que, hoje, a justiça terapêutica constitui-se em novidade para a questão das drogas, perceberemos quão profundas são as permanências históricas do positivismo. Da caligrafia à criminologia, o controle social das populações se dará através das estratégias disciplinares, associadas ao controle pela força.
Se o racismo foi uma invenção da colonização, como disse Foucault 3, a partir do XIX ele vira discurso científico. As teorias do festejado Darwin, que em 1830 buscava o elo perdido em nosso continente, naturalizavam a inferioridade, possibilitavam sua transposição para as ciências sociais como fez Spencer, inspirando o evolucionismo social. O conceito de degenerescência é fundamental para entendermos como nossa mestiçagem iria ocupar “naturalmente” os andares inferiores na evolução humana.
Entre 1812 e 1819 a frenologia de Gall e Spurtzheim já tinha como objeto de estudo o “espírito” localizado no cérebro. Em seu afã de observar, medir e comparar crânios eles buscavam localizar as funções físicas no cérebro, bem no paradigma metodológico instaurado pela Encyclopedie. Glauber Rocha nos mostrou as cabeças cortadas que Tunga exporia na pirâmide do Louvre para retratar as Luzes. Gall pesquisou a “anatomia” do centro da razão durante 20 anos, usando muitas cabeças, buscando a comprovação da superioridade da raça branca caucásica. Anitua expõe as 27 faculdades encontrados por Gall em suas pesquisas: amor físico, amizade, defesa, astúcia etc. As deficiências cerebrais explicavam para o centro do poder os “inferiores” do sul da Europa, os animais e o resto do mundo. As neurociências retomam hoje, nesses tempos difíceis, aquela tarefa fundamental para o capital de naturalizar o crime e o criminoso.
Na frenologia (como nas neurociências) a delinqüência seria determinada biologicamente. Neste ponto ela foi precursora para a passagem do objeto da criminologia. Se o delito era o centro das atenções no pensamento liberal, o objeto que se impõe agora é o delinqüente. As ciências naturais ajudariam a detectar e corrigir os anormais. Este grande discurso contra o igualitarismo se baseava na demonstração científica das desigualdades. E é óbvio que os incorrigíveis, os de natureza irrecuperável iriam provocar aumentos na demanda por pena, que se transformarão em penas indeterminadas pelas políticas criminais nelas inspiradas.
Em 1823 surge a sociedade frenológica na Inglaterra, em 1832 na França. Spurtzheim vai para os Estados Unidos prestar seus serviços para a construção do apartheid norte-americano, abrindo espaço para novos trabalhos como os de Samuel Morton (Crania Americana, 1839 e Breves Comentários sobre as Diferenças das Raças Humanas, em 1842) 4 ou os de Josiah Clark Nolt, que em seu Das Lições de História Natural sobre as Raças Negras e Caucásicas legitimava a ambiência racista que o escravismo e o pós-escravismo necessitavam na América do Norte. A idéia do criminoso nato desenvolvida mais tarde por Lombroso se nutre dessa ambiência científica e política.
A fisiognomia do suíço Johann Kaspar Lavater buscava na análise dos rostos a identificação da alma. É óbvio que o impressionismo da superfície e da aparência vai aguçar e solidificar os preconceitos. No nosso admirável mundo novo, essa técnica tem sido explicitamente utilizada na segurança dos aeroportos. Em 1855 foi instalada a primeira cátedra de antropologia física de Paris. Neste mesmo período Joseph de Gobineau assessorava o Império brasileiro para uma concepção eugenista da população brasileira. Eficaz para o medo branco, “esse discurso do século XIX permitiria que na virada para o XX, o ex-escravo brasileiro fosse transformado de objeto de trabalho em objeto de ciência” 5 . O positivismo convoca o discurso racial para dar conta da neutralização dos desejos e protagonismos populares que a República evocava.
Enfim este saber constituiu-se a serviço da colonização, do escravismo e da incorporação periférica ao processo de acumulação do capital. Ao contrário do liberalismo das revoluções burguesas, a ciência buscava a expansão e a legitimação do poder punitivo contra os perigos do proletariado e do lumpen (a esquerda até hoje tem medo do lumpen). Desses discursos científicos surgiram as propostas de eliminação de Laponge e do arianismo de Chamberlain. Os conceitos de degenerescência, atavismo e eugenia justificavam os genocídios. E, como ensina Zaffaroni, para que o extermínio aconteça faz-se necessário um discurso legitimante que produza técnicas de neutralização e despolitização.
É aí que se funda a criminologia como disciplina, como “ciência”. Este saber se fundou na observação e medição dos encarcerados pelo grande internamento. O século do manicômios era também o século das prisões e dos asilos. A criminologia transforma-se num discurso autonomizado do jurídico, despolitizado e agora gerido pelo saber/poder médico. Como na Inquisição, o “criminoso” será objetificado, agora com o deslocamento do religioso para o científico, no combate ao mal que ameaça. A criminologia seguirá seu percurso de acumulação e atualização dos seus métodos.
Alessandro Baratta entende a escola positivista como aquela que produz a explicação patológica da criminalidade 6. Essas teorias patologizantes trabalham as características bio-psicológicas dos “criminosos”; a humanidade passa a sofrer um grande corte entre normais e anormais. Afinal as classificações são operações políticas, “machines de guerre”, instrumentos de conquista geo-política para o processo de acumulação do capital. Contra o conceito abstrato de indivíduo surge um complexo de causas bio-psicológicas.
O livro fundacional desta corrente seria O homem delinqüente, escrito por Lombroso em 1876. Através de mensurações e classificações realizadas com a população encarcerada nas relações entre as testas, os narizes, queixos, lidas hoje até anedoticamente, o médico italiano inaugura a tautologia do laboratório prisional: a causalidade do comportamento criminal é atribuída a própria descrição das características físicas dos pobres e indesejáveis conduzidos às instituições totais do seu tempo. A sua maneira, Euclides faz a crítica desse positivismo, criticando “as disparidades de vistas que reinam entre os nossos antropólogos. Forrando-se em geral, à tarefa penosa de subordinar as suas pesquisas a condições tão complexas, têm atendido sobremaneira ao preponderar das capacidades étnicas” 7. Ele nos fala da “erupção de uma meia-ciência difundida num extravagar de fantasias, sobre ousadas, estéreis”. Metaquímica sonhadora, devaneios, fantasias. “A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social. Estamos condenados à civilização”. 8 “Não temos unidade de raça, não há um tipo antropológico brasileiro”. 9
Raúl Zaffaroni nos fala da projeção da criminologia positivista: “com fundamentos ou discursos parcialmente diversos, generalizou-se um estereótipo que se estendeu pelo mundo central a partir de uma perspectiva puramente etiológica, que teve um grande sentido racista e que foi incorporando matizes plurifatoriais, sem nunca questionar a legitimidade mais ou menos natural da seletividade do sistema penal”. 10
A recepção dessas idéias na nossa margem latino-americana foi um “assombroso transplante” 11, como diria Roberto Bergalli. Ele analisa histórica e politicamente a conjuntura dessa recepção e nos remete a uma pergunta básica: porque interiorizamos tão profundamente uma ideologia tão destruidora de nossos povos, de nossa cultura? Como nos deixamos aprisionar tão intensamente por um quadro teórico que nos conduziu a nos constituirmos em território-degredo, campos de concentração, zonas de truculência e extermínio sem limite? O positivismo atualizou a configuração da América Latina em gigantesca instituição de seqüestro 12; concentração de povos “degenerados” e indesejáveis: africanos, índios, judeus, mouros e criminosos natos da Europa, misturas perigosas.
Máximo Sozzo analisa o nascimento da Criminologia na América Latina como uma colossal tradução do positivismo, uma importação cultural que configuraria racionalidades, programas e tecnologias governamentais sobre a questão criminal.13 Mas ele também demonstra o caráter não literal de alguns tradutores. A antropofagia, o realismo marginal de Euclides, produziu uma apropriação crítica desse positivismo, dominando sua utensilagem à favor do povo brasileiro. Esse sentido reaparecerá na Revolução de 30, no getulismo popular. Essas marcas aparecem até na antropologia de Darcy Ribeiro.
Rosa Del Olmo trabalhou como ninguém a idéia de controle social dos “resistentes à disciplina do sistema” na criminologia latinoamericana. O positivismo aparece na esteira da difusão ideológica dos países hegemônicos. Ela relaciona o positivismo italiano e os primeiros esforços latinoamericanos surgidos simultaneamente na Argentina, no Brasil e no México.14
O importante é compreender como essa grande tradução, denunciada por Sozzo, produziu uma matriz discursiva comum, uma identidade, que gerou não só um certo olhar sobre a questão criminal, mas também uma certa polícia e um determinado projeto penitenciário. Ou seja, o positivismo configurou, modelou o poder punitivo e suas racionalidades, programas e tecnologias governamentais na América Latina, instituindo fronteiras entre as elites e o povo brasileiro.
Nina Rodrigues funda não só a criminologia, como a medicina-legal e a antropologia no Brasil num processo profundamente analisado por Mariza Correa. 15 Raúl Zaffaroni sempre se pergunta como a tradução de Lombroso pode florescer tão intensamente na Bahia africana de Nina Rodrigues.
Nina Rodrigues escreveu um artigo intitulado Os negros maometanos no Brasil, no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro de 2 de novembro de 1900, em que se refere à rebelião escrava na Bahia de 1835. O seu surpreendente trabalho revela a profunda ambigüidade da sua produção intelectual: foi ele quem fundou, ao lado da Medicina-Legal e da Antropologia brasileira, a escola positivista, com suas traduções e incorporações do lombrosianismo e do social-darwinismo. No entanto, tinha uma espécie de curiosidade apaixonada pela vida africana no Brasil. Sua trajetória reflete um pouco esta grande contradição brasileira com relação a sua africanidade: perceber intensamente a sua presença e sua força, tratando sempre de dominá-la. No seu caso, trabalhando a teoria da hierarquização das raças, estigmatizando a “raça negra” para que o fim da escravidão em si não representasse uma ruptura social. O controle social e a opressão se justificariam então pelo discurso científico. 16
Mas o positivismo não foi apenas uma maneira de pensar, profundamente enraizada na intelligentsia e nas práticas sociais e políticas brasileiras, ele foi principalmente uma maneira de sentir o povo, sempre inferiorizado, patologizado, discriminado e por fim, criminalizado. Funcionou, e funciona, como um grande catalizador da violência e da desigualdade características do processo de incorporação da nossa margem ao capitalismo central.
Sempre digo, em minhas aulas, que todo brasileiro tem que ler Os Sertões, de Euclides da Cunha (e se puder, assistir aos Sertões de Zé Celso Martinez Corrêa). Euclides começa sua viagem pelo Brasil profundo trabalhando com os instrumentos racistas do positivismo. Seu encontro com a chacina fundacional da República não deixa pedra sobre pedra das etiologias determinantes. Ao contrário de Nina, ele abandona suas armas metodológicas e se entrega àquela história, àquele povo. O que seríamos de nós sem essa narrativa da luta, da nossa luta ancestral e arquétipica?
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas; um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. 17
Sobre a descoberta do cadáver de Antônio Conselheiro, a maior deslegitimação do positivismo como fetiche encobridor da verdade do massacre:
Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crâneo. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura... 18
As teorias gerais sucumbem como os grandes narradores. É por isso que a grandeza dos Sertões de Euclides não sucumbe ao anacronismo de suas idéias sociológicas, mas revive na narrativa, na descrição dos sertões.
O cisco positivista sai dos olhos, iluminando-se nas fogueiras ‘destruidoras de uma crença forte’, como das mulheres preferindo se lançar nela com os filhos a se render à República. ‘Os Sertões’ é um livro escrito por uma compulsão religiosa. Mais do que um testemunho do holocausto de quem não suportou assistir a seus últimos dias, é um ser vivo soprado por essa crença imbatível do ser em insurreição sertaneja. 19
O livro Os Sertões foi o primeiro ataque ao escândalo de dois Brasis desiguais, com a repressão do próprio Estado brasileiro, massacrando, degolando seu próprio povo. Euclides foi inspirado por todas as línguas de fogo do Espírito Santo. Escrito em todas as línguas, linguagens, ciências, poesias, começou a interpretar através do crime praticado pela nacionalidade, o próprio Brasil, para nós mesmos brasileiros e para todo mundo. 20
Na nota preliminar que escreve ao editar Os sertões, em 1901, Euclides se refere ao “narrador sincero que encara a história como ela o merece”. Nossas chacinas de hoje, e o Rio de Janeiro tem sido palco de muitas, me remetem sempre àquelas palavras preoféticas de Euclides: “Aquela campanha lembra um refluxo para o passado. E foi na significação integral da palavra, um crime. Denunciemo-lo”. 21
Se a campanha de Canudos teve a “significação inegável de um primeiro assalto, em luta talvez longa”, para nós que trabalhamos a questão criminal a lição mais importante é deixar de ser de uma certa intelligentsia que legitima o massacre: “(...) tivemos na ação um papel singular de mercenários inconscientes”. 22 Deixarmos de ser mercenários inconscientes é a questão. E é aqui que as pegadas trágicas de Euclides da Cunha projetam aquela narração para o futuro, e aquele homem transcende o seu tempo.
* Socióloga. Coordenadora do Instituto Carioca de Criminologia.
1. NEDER, Gizlene. Discurso jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 1995
2. MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2006.
3. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
4. Cf. ANITUA, op. cit., cap. IV, ponto 5 “Antecedentes de la criminología como ‘ciencia’: fisiognomia y el racismo”.
5. BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Op. cit., p. 158.
6. Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal, op. cit.
7. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Cultrix/INL, 1973. p. 70.
8. CUNHA, op. cit., p. 72.
9. Ibidem, op. cit., p. 84.
10. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Criminología: aproximación desde un margen. Bogotá: Temis, 1988, p. 169.
11. BERGALLI, Roberto et al. El pensamiento crítico y la criminología: el pensamiento criminológico. Bogotá: Temis, 1983.
12. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
13. CF. SOZZO, Máximo. “Tradutore traditore”. Tradicción, importanción cultural e história del presente de la criminología en América Latina. In: Cuadernos de Doctrina y Jusrisprudencia Penal. Ano VII, n., 13. Buenos Aires: Ad. Hoc. Vilela Editor, 200
14. DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2004.
15. CORREA, Mariza. As ilusões da liberdade. Bragança Paulista: Edusf, 1998.
16. BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Op. cit., pp. 225-226.
17. CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Cultrix, 1973. p. 392.
18. CUNHA, op. cit., p. 393.
19. MARTINEZ CORRÊA, José Celso, in Caderno Mais, Folha de São Paulo, 28 de janeiro de 2001.
20. Cf. José Celso Martinez Corrêa, in Os Sertões irrigando gotejando Canudos, programa do espetáculo da Associação Teatro Oficina, Uzyna Uzona, patrocinado pela Petrobrás e encenado em Canudos, na Bahia, de 28 de novembro a 2 de dezembro de 2007.
21. CUNHA, op. cit., p. 30.
22. CUNHA, op. cit., p. 29.
Polifonia inumana no teatro da loucura
Peter Pál Pelbart *
Somos a Cia Teatral Ueinzz, surgida em São Paulo há doze anos atrás. Loucos, terapeutas, performers, camareiras, filósofos, normopatas, em cena todos nos confundimos. É uma espécie de Nau dos Insensatos, à deriva no circuito artístico e fora dele. Ensaiamos semanalmente, já montamos quatro espetáculos, tivemos mais de 150 apresentações, viajamos muito pelo Brasil e também no exterior, isso é parte de nosso curriculo glorioso. Mas tal concretude não garante nada. Por vezes passamos meses no marasmo de ensaios semanais insípidos, às vezes nos perguntamos se de fato algum dia nos apresentamos ou voltaremos a nos apresentar, alguns atores desaparecem, o patrocínio míngua, textos são esquecidos, a companhia ela mesma parece uma virtualidade impalpável.
E, de repente surge uma data, um teatro disponível, um mecenas ou um patrocinador, o vislumbre de uma temporada, um convite para o Cariri ou Lapônia... O figurinista recauchuta os trapos empoeirados, atores sumidos há meses reaparecem, às vezes fugidos até de uma internação... Mas mesmo quando tudo “vinga”, é no limite tênue que separa a construção do desmoronamento. Margeamos uma aguda intuição de Blanchot, segundo a qual o fundo da obra é desobramento (desoeuvrement). E na sua esteira, uma hipótese de Foucault, de que com o declínio histórico da aura da loucura, e sua transformação em doença mental, ela reaparece como desrazão. Isto é, como desforra, ausência de obra, “ruptura absoluta da obra”. Eu situaria nossa trajetória performática nesse limiar movediço, entre a loucura e a desrazão, como experiência escarpada sobre o abismo, onde fala o acaso, a ruína, a passividade, o neutro: o fora.
Primeiro exemplo. Íamos apresentar “Dédalus” num importante Festival de Teatro brasileiro. Faltavam poucos minutos para a trupe entrar em cena. Cada ator se preparava para proferir em grego o embate agonístico que dá início a esse espetáculo “sem pé nem cabeça”, conforme o comentário elogioso de um crítico da imprensa de São Paulo. Eu aguardo tenso, repasso na cabeça as palavras que devemos lançar uns contra os outros, em tom intimidatório e desenfreada correria. Passeio os olhos em meio ao público e percebo nosso narrador recuado do microfone alguns metros – ele parece desorientado. Aproximo-me, ele me conta que perdeu seu texto. Enfio a mão no bolso de sua calça, onde encontro o maço de folhas por inteiro. O ator olha os papéis que estendo à sua frente, parece não reconhecê-los, põe e tira os óculos, e murmura que desta vez não participa da apresentação – esta é a noite de sua morte. Trocamos algumas palavras e minutos depois, aliviado, vejo-o de volta ao microfone. Mas sua voz, em geral tão trêmula e vibrante, soa agora pastosa e desmanchada. No meio de uma cena em que ele é Caronte, bruscamente atravessa o palco na diagonal e dirige-se à saída do teatro. Na rua, eu o encontro sentado na mais cadavérica imobilidade, balbuciando sua exigência de uma ambulância – chegou a sua hora.
Ajoelho-me ao seu lado e ele diz: “Vou para o charco”. Depois a situação se alivia e negociamos: ele aceita um cheesburger do McDonald´s em vez da ambulância. Ouço os aplausos finais vindos de dentro do teatro, e o público começa a retirar-se pela portinhola que dá para a rua, onde estamos eu e ele. O que vêem quando saem é Hades, rei do inferno (meu personagem) ajoelhado aos pés de Caronte morto-vivo, pelo que recebemos uma reverência respeitosa de cada espectador que passa por nós, para quem essa cena íntima parece fazer parte do espetáculo. Foi tudo por um triz. É por um triz que nos apresentamos, é por um triz que não morremos. Obra, desobramento, ausência de obra.
Recuemos alguns meses. É o primeiríssimo ensaio da Cia, realizado ainda nas dependências do Hospital-Dia "A Casa" onde teve início nosso grupo. Num exercício teatral sobre os diferentes modos de comunicação entre seres vivos, pergunta-se a cada pessoa do grupo que outras línguas fala, além do português. Um paciente que nunca fala, apenas emite um som anasalado semelhante a um mantra disforme, responde imediatamente e com grande clareza e segurança, de todo incomuns nele: alemão!. Surpresa geral, ninguém sabia que ele falava alemão. E que palavra você sabe em alemão? Ueinzz.. E o que significa Ueinzz em alemão? Ueinzz.. Todos riem – eis a língua que significa a si mesma, que se enrola sobre si, língua esotérica, misteriosa, glossolálica. Inspirados no material coletado nos laboratórios, os diretores trazem ao grupo sua proposta de roteiro: uma trupe nômade, perdida no deserto, sai em busca de uma torre luminosa, e no caminho cruza obstáculos, entidades, tempestades. Ao cruzar um oráculo, em sua língua sibilina ele deve indicar o rumo que convém aos andarilhos.
O ator para o oráculo é prontamente designado: é este que fala alemão. Ao lhe perguntarem onde fica a torre Babelina, ele deve responder: Ueinzz. O paciente entra com rapidez no papel, tudo combina, o cabelo e bigode bem pretos, o corpo maciço e pequeno de um Buda turco, seu jeito esquivo e esquizo, o olhar vago e perscrutador, de quem está em constante conversação com o invisível. É verdade que ele é caprichoso, quando lhe perguntam: Grande oráculo de Delfos, onde fica a torre Babelina?, às vezes ele responde com um silêncio, outras com um grunhido, outras ele diz Alemanha, ou Baurú, até que lhe perguntam mais especificamente, Grande oráculo, qual é a palavra mágica em alemão? e aí vem, infalível, o Ueinzz que todos esperam. O mais inaudível dos pacientes, o que faz xixi na calça e vomita no prato da diretora, caberá a ele a incumbência crucial de indicar ao povo nômade a saída das Trevas e do Caos. Depois de proferida, essa sonoridade deve proliferar pelos alto-falantes espalhados pelo teatro, girando em círculos concêntricos e amplificando-se em ecos vertiginosos, Ueinzz, Ueinzz, Ueinzz. A voz inumana que nós não ouvíamos encontra aí, no espaço cênico e ritual, uma eficácia mágico-poética. Quando a peça é batizada com essa som, temos dificuldade em imaginar como se escreve isto. O convite vai com weeinz, o folder com ueinzz, o cartaz brinca com as possibilidades de transcrição, numa grande variação babélica. Hoje somos a Cia Teatral Ueinzz. Nascemos numa ruptura a-significante, diria Guattari.
Nossa penúltima peça foi inspirada em Batman e Ítalo Calvino. Chamava-se Gotham-SP, cidade invisível ou mitológica, proveniente das histórias em quadrinho, das telas de cinema e dos delírios mais persistentes de um de nossos atores. Em Gotham-SP toda noite, do alto de sua torre, o prefeito esbraveja indistintamente contra magnatas, prostitutas e psiquiatras. Promete mundos e fundos, o controle e a anarquia, o pão e a clonagem. O imperador Kublai Khan, por sua vez, quase cego e quase surdo, é o destinatário de vozes perdidas. Uma moradora solitária repete em seu cubículo: “Aqui faz frio”. Um passageiro pede companhia a um taxista na noite chuvosa, e recita fragmentos de Nietzsche ou de Pessoa. A diva decadente busca a nota musical impossível, Ofélia sai de um tonel de água atrás do amado, os anjos tentam entender onde pousaram, Josué ressuscitado reivindica uma outra ordem no mundo... Falas singulares que se cruzam agonisticamente numa polifonia inumana, sonora, visual, cênica, metafísica.. Vozes dissonantes que nenhum imperador ou prefeito consegue orquestrar, mas tampouco abafar. Cada um dos seres que comparece em cena carrega no corpo frágil seu mundo gélido ou tórrido...
Uma coisa é certa: do fundo de seu isolamento pálido, esses seres pedem ou anunciam uma outra comunidade de almas e corpos. Comunidade dos que não têm comunidade, como diz Bataille, comunidade por vir, como diz Blanchot, comunidade desobrada, diz Nancy, comunidade dos celibatários, dirá Deleuze, a comunidade que vem, arremata Agamben.
Aqui vai um último fragmento que extrapola o domínio teatral. Fomos convidados por François Tanguy para um convívio de uma semana com os atores do Théâtre du Radeau, no Sul da França, num projeto de afetação recíproca. Um dia, um de nossos atores propôs a Laurence, uma das atrizes da Cia francesa, um casamento, ao que ela respondeu afirmativamente, performaticamente. Ela vestiu-se com um véu de noiva, enquanto ele trajava uma suntuosa capa de veludo verde, como um príncipe russo, com uma gigantesca máscara de veado sobre a cabeça. Os convivas usaram perucas exóticas, e num clima feérico algo do limite entre razão e desrazão, realidade e ficção, arte e vida foi deslocado e assumido coletivamente, ritualmente, performaticamente.
Gostaria agora de lhes propor um salto teórico, que a meu ver enfeixa esses episódios todos.
O que está em jogo nesse dispositivo teatral ou parateatral ou performático é a subjetividade singular e desarrazoada dos atores, e nada mais. Isto é, o que está em cena ou em ato é uma maneira de perceber, de sentir, de vestir-se, de colocar-se, de mover-se, de falar, de pensar, de perguntar, de oferecer-se ou subtrair-se ao olhar ou à escuta do outro, ou ao seu gozo, mas também uma maneira de representar sem representar, de associar dissociando, de viver e de morrer, de estar no palco e sentir-se em casa simultaneamente, nessa presença precária, a um só tempo plúmbea e impalpável, que leva tudo extremamente a sério e ao mesmo tempo “não está nem aí”, como o definiu o compositor Livio Tragtenberg – ir embora no meio do espetáculo atravessando o palco com a mochila na mão porque sua participação já acabou, ora largando tudo porque chegou a sua hora e vai-se morrer em breve, ora atravessar e interferir em todas as cenas como um líbero de futebol, ora conversar com o seu ‘ponto’ que deveria estar oculto, denunciando sua presença, ora virar sapo... Ou então grunhir, ou coaxar, ou como os nômades de Kafka em A Muralha da China, falar como as gralhas, ou apenas dizer Ueinzz...
Não consigo deixar de pensar que é esta vida em cena, “vida por um triz”, que faz uma das peculiaridades dessa experiência. Alguns espectadores têm a impressão de que são eles os mortos-vivos, e que a vida verdadeira está do lado de lá do palco. De fato, num contexto marcado pelo controle da vida (biopoder), as modalidades de resistência vital proliferam de maneiras as mais inusitadas. Uma delas consiste em pôr literalmente a vida em cena, não a vida nua e bruta, como diz Agamben, reduzida pelo poder ao estado de sobrevida, mas a vida em estado de variação, modos “menores” de viver que habitam nossos modos maiores e que no palco ou fora dele ganham visibilidade cênica ou performática, mesmo quando se está à beira da morte ou do colapso, da gagueira ou do grunhido, do delírio coletivo ou da experiência-limite. No âmbito restrito ao qual me referi aqui, eis um dispositivo entre outros para a experimentação hesitante e sempre indecidível, inconclusa e sem promessa, de reversão do poder sobre a vida em potência da vida.
Permitam-me situar isso num contexto mais amplo, contemporâneo, biopolítico. Por um lado, o poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder penetrou todas as esferas da existência, e as mobilizou inteiramente, e as pôs para trabalhar. Desde os gens, o corpo, a afetividade, o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade, tudo isso foi violado, invadido, colonizado, quando não diretamente expropriado pelos poderes. Mas o que são os poderes? Digamos, para ir rápido, com todos os riscos de simplificação: as ciências, o capital, o Estado, a mídia, as instituições, inclusive “culturais”. Os mecanismos diversos pelos quais eles se exercem são anônimos, esparramados, flexíveis, rizomáticos. O próprio poder se tornou "pós-moderno", ondulante, acentrado, reticular, molecular.
Com isso, ele incide de maneira mais direta sobre nossas maneiras de perceber, de sentir, de amar, de pensar, até mesmo de criar. Se antes ainda imaginávamos ter espaços preservados da ingerência direta dos poderes (o corpo, o inconsciente, a subjetividade), e tínhamos a ilusão de preservar nesses âmbitos alguma autonomia, hoje nossa vida parece integralmente subsumida a tais mecanismos de modulação da existência. Até mesmo o sexo, a linguagem, a comunicação, a vida onírica, mesmo a fé, nada disso preserva já qualquer exterioridade em relação aos mecanismos de controle e monitoramento. Para resumí-lo numa frase: o poder já não se exerce desde fora, nem de cima, mas como que por dentro, pilotando nossa vitalidade social de cabo a rabo. Não estamos mais às voltas com um poder transcendente, ou mesmo repressivo, trata-se de um poder imanente, produtivo. Esse biopoder não visa barrar a vida, mas encarregar-se dela, intensificá-la, otimizá-la. Daí também nossa extrema dificuldade em resistir, já mal sabemos onde está o poder, e onde estamos nós, o que ele nos dita, o que nós dele queremos, nós próprios nos encarregamos de administrar nosso controle. Nunca o poder chegou tão longe e tão fundo no cerne da subjetividade e da própria vida como nessa modalidade contemporânea do biopoder.
Mas quando parece que “está tudo dominado”, como diz a letra de um funk brasileiro, no extremo da linha se insinua uma reviravolta: aquilo que parecia submetido, controlado, dominado, isto é, “a vida”, revela no processo mesmo de expropriação, sua potência indomável, por mais errática que seja. Tomemos apenas um exemplo. O capital precisa hoje, não mais de músculos e disciplina, porém de inventividade, de imaginação, de criatividade, de invenção, do que alguns chamam de força-invenção. Mas essa força-invenção, de que o capitalismo se apropria e que ele faz render em seu benefício próprio, não emana dele, e no limite poderia até prescindir dele. É o que se vai constatando aqui e ali: a verdadeira fonte de riqueza hoje é a inteligência das pessoas, sua criatividade, sua afetividade, e tudo isso pertence, como é óbvio, a todos e a cada um, não ao capital, nem ao Estado, nem às ciências, nem à mídia, nem às instituições. Aquilo que parecia inteiramente submetido ao capital, ou reduzido à mera passividade, a “vida”, a "inteligência", a "afetividade", a "sociabilidade", aparece agora como reservatório inesgotável de sentido, manancial de formas de existência, germe de direções que extrapolam as estruturas de comando, os cálculos dos poderes constituídos, a subjetividade formatada.
Seria o caso de percorrer essas duas vias maiores como numa fita de Moebius, o biopoder, a biopotência. Assim, se hoje o capital penetra a vida numa escala nunca vista e vampiriza sua força de criação, o avesso também é verdadeiro: a própria vida revida, rediviva. E se as maneiras de ver, de sentir, de pensar, de perceber, de morar, de vestir, de colocar-se, por mais singulares que sejam, tornam-se objeto de interesse e investimento do capital, elas também passam a ser fonte de valor e podem, elas mesmas, tornar-se um vetor de valorização ou autovalorização ou mesmo de desvio. Por exemplo, quando um grupo de presidiários compõe e grava sua música, o que eles mostram e vendem não é só sua música, nem só suas histórias de vida escabrosas, mas seu estilo, sua percepção, sua revolta, sua causticidade, sua maneira de vestir, de “morar” na prisão, de gesticular, de protestar – sua vida. Seu único capital sendo sua vida, no seu estado extremo de sobrevida e resistência, é isso que eles capitalizaram e que assim se autovalorizou e produziu valor. Nessa perspectiva, se é claro que o capital se apropria da subjetividade e das formas de vida crescentemente, a subjetividade é ela mesma um capital biopolítico de que cada vez mais cada um dispõe, virtualmente, sejam os ditos periféricos, ditos loucos, detentos, índios, mas também todos e qualquer um e cada qual com a forma de vida singular que lhe pertence ou que lhe é dado inventar – com conseqüências políticas a determinar.
Retomemos essa perspectiva nos termos de nosso encontro. É óbvio que o biopoder faz da vida individual e coletiva um objeto de dominação, de cálculo, de manipulação, de intervenção, quando não de fetichização ou estetização, com a capitalização correspondente. Mas é preciso acrescentar, pelo menos no caso das ditas “minorias”, que essa vida resiste a tais mecanismos de controle, reinventando suas coordenadas de enunciação e de autoenunciação. No caso da loucura, e talvez seja esse o sentido da “desrazão-sujeito-de-si” evocada anteriormente, isso se dá em dois movimentos simultâneos. Por um lado, ela se dessubjetiva segundo linhas de força inesperadas. Por outro, ensaia modos de subjetivação singulares, plurais, coletivos, inumanos. Nesse movimento paradoxal, ela escapa à dupla camisa de força que a aprisionava, transbordando os limites que a objetificação assujeitadora lhe impusera. Pois se a loucura, como se sabe desde Foucault, foi expulsa do convívio social, enclausurada e silenciada desde o século 17, e tornou-se, com o advento da medicalização psiquiátrica no século 19, doença mental, e por conseguinte, objeto de tratamento moral, depois psicológico, e por fim medicamentoso, um fluxo esquizo jamais deixou de transbordar os limites que lhe reservou a racionalidade científica. Esse fluxo escorre por todo o corpo social, esquizofreniza o entorno e dissemina-se pelos domínios os mais diversos, inclusive pelas práticas coletivas, políticas e poéticas, conforme a intuição aguda de Deleuze e Guattari.
Assim, seria preciso inserir nossa experiência nessa linhagem flutuante, que vai da história da loucura ao fluxo esquizo, e que vem desembocar na vizinhança das artes performáticas. É assim que o antenou, desde o início de nossa trajetória, Renato Cohen, um de nossos diretores e encenadores, conhecido teórico e difusor da performance no Brasil, recentemente falecido. Ao comentar a experiência da companhia, cujo trabalho ele definiu ocasionalmente como work in process, ele escreveu: “Os atores da Cia têm em seu favor um raro aliado, que desfaz a representação em seu sentido mais artificial: o tempo. O tempo do ator incomum é mediado por todos seus diálogos, ele é transbordado pelos subtextos, que se tornam seu próprio texto. A resposta nos diálogos não vem imediata, racional, ela percorre outros circuitos mentais. Há um delay, um retardo cênico, que põe toda a audiência em produção. O ator, de modo intuitivo, se desloca entre a identificação stanislavskiana e a colocação à distância de Brecht. E ele se excita, diante dos aplausos do público, ele realiza sua “tourada” cênica, medindo forças com a audiência e suas próprias sombras interiores”. Não é o tempo ficcional da representação, mas do ator, ou performer, que entra e sai de seu personagem, deixando ver outras dimensões de sua atuação: “É nessa estreita passagem da representação para a atuação, menos deliberada, com espaço para o improviso, para a espontaneidade, que caminha a live art, com as expressões happening e performance. É nesse limite tênue também que vida e arte se aproximam.
À medida que se quebra com a representação, com a ficção, abre-se espaço para o imprevisto, e portanto para o vivo, pois a vida é sinônimo de imprevisto, de risco.”, diz Cohen, involuntariamente aproximando-se da última formulação de Foucault, num texto sobre Canguilhem, em que definia a vida como erro, errância. Na experiência do grupo, vários movimentos o atestam. “Atores que abandonam sua posição para assistir a cena dos outros, e retomam a sequência dramática. Atores que realizam grandes monólogos e, também, que os abandonam sem completar suas frases. Essa estridente partição de erros, de achados, de reinvenção de texto, se contrói diante do público. O espetáculo se torna então ritual, onde todos assistem o impossível continuando, os corpos curvados que dançam, as vozes inaudíveis que ganham potências amplificadas graças à eletrônica instalada no espetáculo”. Os microfones ficam visíveis, pois o “som que fica no subconsciente é o som da mídia – o som da televisão, do rádio, da música eletrônica, do computador.” Outros, mesmo sem microfone, não impostam a voz e mal são ouvidos, seja por não possuírem técnica vocal, seja por dificuldades na fala ou problemas de dicção. A fala perde um pouco de seu peso no conjunto dos elementos da cena, dando espaço para outras falas (corporais por exemplo), numa disjunção entre “corpos sem vozes e vozes sem corpo”. Claro que há ressonâncias com Bob Wilson, pois os elementos diversos em cena adquirem o mesmo peso, sem hierarquia, como aliás em Cunningham, cada um com uma vida em si, a música, a dança, a fala, a luz, sem que nenhum fique subordinado ao outro, numa justaposição, mesmo se elas formam um todo fantástico, com quadros cênicos e emoções que derivam antes do inconsciente do que da inteligência.
Parafraseando Jacó Guinsburg, os elementos heterogêneos que compõem essa Gesamtkunstwerk destotalizada estão submetidos, um a um, a um processo de ´neutralização´, o qual torna mudo o caráter utilitário desses mesmos elementos e os modifica em material novo, prestes a reintegrar-se no todo de modo menos convencional. Mais do que criar uma construção poética formal e organizada, trata-se de transcrever gestos e palavras ditas e pensadas em contextos contemporâneos, utilizando assim uma espécie de reservatório inconsciente da cultura. O fato de que se produza um texto incoerente não é, em si mesmo, um problema, visto que não existe aqui um desenvolvimento narrativo, já que todas as atividades em cena se mantêm num estado de permanente “presente absoluto” pela contínua estimulação da energia do performer. Toda essa energia, com a livre manipulação dos códigos cênicos, reinventa a relação entre arte-vida numa tensão limite, em contraposição ao tempo simbólico do teatro. “Paisagens visuais, textualidades, performers, luminescências, numa cena de intensidades em que os vários procedimentos criativos trafegam sem as hierarquias clássicas entre texto-ator-narrativa”. Num resgate da ambivalência entre razão e desrazão, diz Cohen, legitima-se o campo da pulsionalidade, das irrupções do inconsciente, dos espaços esquerdos, das narrativas transversas, com climas de intensidade abstrata, incisões críticas, paisagens mentais, processos derivativos, índices sonoros, abrusões.
Bem, eu poderia encerrar a reflexão sobre nossa experiência nesse tom ascendente, estético, mas deixaria de lado uma parceria que infletiu nossa trajetória e como que a pôs em suspenso. Trata-se de um projeto com a artista franco-argentina Alejandra Riera, que propôs ao grupo uma “Enquete sobre o/nosso Fora". O dispositivo era simples: uma saída coletiva por dia, ao longo de dez dias, para algum ponto da cidade sugerido pelos atores, onde o grupo abordava alguém de sua escolha, pedestre, vendedor, estudante, policial, anônimo, morador de rua, e lhe lançava à queima roupa as perguntas que lhe viessem à mente. Numa situação insólita, onde o entrevistado ignora tudo do entrevistador, mas por vezes percebe uma estranheza, as regras de uma entrevista jornalística são reviradas, e tudo começa a girar em falso, sem que se consiga detectar a razão do descarrilhamento. Os lugares derrapam, as máscaras pessoais, profissionais ou institucionais que cada um sustenta caem por terra, deixando entrever dimensões inusitadas da inquietante "normalidade" cotidiana que nos rodeia, como dizia a artista. Com a câmara deslocada, que põe em xeque o ponto de ancoragem do discurso, cria-se um hiato entre imagem e fala, e uma suspensão no automatismo da compreensão.
Tomemos um episódio minúsculo. Estávamos diante da Assembléia Legislativa em São Paulo, e conversávamos com um vendedor de amendoim. Um de nossos atores lhe pergunta qual é a magia desse lugar. O ambulante não compreende, e pergunta se o entrevistador quer saber quanto ele ganha. “Não, eu queria saber qual é sua felicidade, aqui”. “Não entendo”, diz o outro. O ator, um pouco exaltado pela surdez do interlocutor, lhe lança à queima-roupa: “mas não, eu quero saber qual é o seu desejo, qual é o sentido de sua vida”.. Então tudo se interrompe, segue-se uma suspensão no diálogo, um silêncio, e vemos o homem afundar numa dimensão totalmente outra, longe de qualquer contexto jornalístico. E ele responde, baixinho, com certo custo: "o sofrimento"... É o fundo sem fundo de toda a conversa, o desastre que já ocorreu, o esgotamento que não pode ser dito, é a solidão amarga de um homem acuado diante de um edifício monumental que representa um poder inabalável porém vazio, é tudo isso que só aparece sob o modo de uma interrupção brusca desencadeada por uma espécie de impaciência vital. Interrupção provocada por aquele que supostamente deveria estar afundado em seu abismo – o ator louco.
E aí tudo bascula, e o espectador subitamente se pergunta de que lado está a vida, e se essa pergunta ainda tem algum sentido pois é todo um contexto de miséria que emerge nesse diálogo incomum. O que faz irrupção é a instabilidade psicossocial sobre a qual tudo repousa, e igualmente, por momentos fugazes, os germes de outra coisa. Ao esquizofrenizar a situação, por um tempo tem-se a impressão que tudo pode descarrilhar, as funções, os lugares, as obediências, os discursos, as representações. Tudo pode fracassar, inclusive o dispositivo. Mesmo se reencontramos o que estava lá desde o início: o sofrimento, a resignação, a impotência, assiste-se a desconexões que fazem fugir uma dita normalidade, bem como seus automatismos encadeados, evocando outros liames possíveis com o mundo. Como diz a artista, não é uma reportagem social, nem uma enquete com fins humanistas, mas sim o registro de uma experiência. Sem maquiagem, sem pretensão de denúncia, sem inclinação à estetização. Não se tem propriamente um documentário, ou um filme, mas um objeto insólito, o rastro de um acontecimento, que ao ser visto pode desencadear outros acontecimentos, como foi o caso quando alguns fragmentos foram mostrados na mítica clínica La Borde, onde viveu Guattari, com a presença de dezenas de pacientes e psiquiatras, inclusive o fundador da clínica, Jean Oury. Na enorme sala central do castelo decadente, num final de tarde de uma sexta-feira, em setembro de 2008, as pessoas esperam o “filme brasileiro” feito por um “grupo de teatro”, conforme o rumor que corre entre todos.
Ora, não haverá “filme brasileiro”, nem “documentário”, nem “filme”, nem “peça de teatro”. Ausência de obra. Como explicar isso sem decepcionar a alta expectativa? Finda a reunião semanal, enquanto as cem pessoas sentadas no salão viram-se em direção ao telão já estendido, e as janelas se fecham para permitir a projeção do ‘filme brasileiro”, Alejandra Riera cumprimenta os presentes, e esclarece de cara que não pretende apresentar um filme. Explica que isso é apenas uma experiência, que é muito difícil falar disto... e ao invés de discorrer sobre o projeto, suas intenções, sua lógica, como seria esperado, ela confessa que tem muita dificuldade em trabalhar, ultimamente.. que no fundo não consegue mais... trabalhar ou construir... imagine-se o efeito dessa conversa numa população que desertou há muito o circuito do “trabalho”, dos “projetos”, dos “resultados”. E acrescenta que nos últimos tempos tudo o que consegue é desmontar as coisas. Inclusive, não pára de desmontar as ferramentas com as quais antes trabalhava, por exemplo, o computador... E retira de sua bolsa dois saquinhos plásticos, com fragmentos do teclado desmontado: um deles contém as teclas do alfabeto, outro as das funções (del, ctrl, alt, etc). E passa adiante os saquinhos transparentes, com as peças amontoadas, para que circulem pelos presentes.
A expectativa espetacular de um filme dá lugar a uma cumplicidade inusitada, com uma artista que não se diz artista, que não traz obra, que confessa não conseguir trabalhar, que mostra restos de computador, pedaços de uma desmontagem, que evoca um projeto cuja impossibilidade confessa de imediato, deixando entrever o impasse, o fiasco, a paralisia, o esgotamento que nos é comum a todos, sejamos loucos ou filósofos, artistas ou psiquiatras... Só assim, feito o curto-cicuito no encadeamento entre “arte” e “público”, desmanchado o glamour ou o entretenimento ou a cultura ou a obra ou o objeto que se poderia esperar dessa “apresentação” de imagens, “desindividuada” a protagonista central que sai de cena, outra coisa pode acontecer – não um evento, porém o efeito de uma suspensão. Pode até ocorrer a projeção dos fragmentos, uma conversa polêmica, por vezes acusatória ou visceral, que se arrasta noite adentro, na penumbra do salão que ninguém ousa iluminar, e que termina com a pergunta hilária de uma interna, “vocês têm um projeto”? Como quem reata com a fala inicial de Alejandra, que confessa sua dificuldade em trabalhar, em construir um projeto, em fazer obra, ou com a intuição de Blanchot sobre a vizinhança necessária entre a arte e o desobramento, ou com a idéia de Foucault sobre a relação entre loucura e ruptura de obra. Talvez se performatize aí o esgotamento do projeto ou da obra, para que vozes inaudíveis e acontecimentos improváveis possam vir à tona, nessa conjunção rara entre arte e loucura, fluxo esquizo e suspensão do mundo.
Há décadas atrás, Foucault ficou seduzido pelos homens infames, suas vidas insignificantes, sem glória, que por um jogo do acaso eram iluminados por um átimo pelo holofote do poder com o qual se defrontaram e cujas palavras pareciam então atravessadas por uma intensidade insólita.
Talvez já não encontremos essas existencias fulgurantes, embora inessenciais, esses poemas vidas, "partículas dotadas de uma energia tanto maior quanto menores e mais difíceis de serem detectadas.." Diluídas entre os múltiplos mecanismos de poder anônimos, as palavras não gozam mais daquela fulguração teatral e vibração fugaz que Foucault saboreava nos arquivos – é a banalidade que toma o proscênio. Mas no seio dela, emissões de singularidade parecem afirmar o desejo de outra coisa. Como dizia Deleuze, antes mesmo que o termo biopolítica fosse cunhado, estamos em busca de uma “vitalidade”. Singular, coletiva, anônima, plural, suspensiva, intensiva, desobrada – no limite indefinido e a cada vez reinventado, entre o esgotamento e uma vidência fugidia.
* Filósofo. Professor da PUC/SP |