Um Haiti ainda trágico

João Luiz Duboc Pinaud*

O terremoto que abalou o Haiti, com sua a trágica destruição, tornou visíveis as condições imoralmente mantidas do viver haitiano. E a gravidade revelada, espera-se, permitirá o ingresso na pauta internacional das urgências, o apoio imediato.

A inviabilidade política, no curso do século 21, revelou inaceitável condenação a morrer previsto, metódico, frio, crudelíssimo e sem apelos. E este absurdo, ínsito no sistema capitalista, resvala para a irracionalidade e revela a insanidade política ferindo um povo na expansão da vitalidade que uma Nação consegue magicamente deter.
Em 2005, o JUBILEU SUL com o Prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel e Nora Cortines (Madres da Praça de Maio) e representantes de valiosas instituições (PACS, CONIC, MST, VIA CAMPESINA), promoveu relevante Missão Internacional no Haiti verificando circunstância política do seu povo. Estudou seu contexto histórico-social, a luta pela autodeterminação, não evitando questionar a presença bélica de outro tipo de missão “humanitária” promovida pela ONU.

Tal fato coloca para reflexão: dentro da ajuda efetiva advinda da sociedade civil de vários países, a chamada “Missão Humanitária” promovida pela ONU (com o Brasil na chefia), termina por reprimir frontalmente os movimentos sociais haitianos nas suas legítimas reivindicações por condições mínimas de sobrevivência e dignidade. Sem esquecer a existência de 18 (dezoito) zonas francas nessa pequena ilha montanhosa, onde estão as chamadas “indústrias da agulha” (têxteis). E destacar que tais indústrias não prescindem do esforço humano e o remuneram com salários vis (60 dólares mensais) para manter altas taxas de lucro e competitividade no mercado mundializado.

E, além disso, com sua forte negatividade social, não pagam imposto ao governo, em tais espaços produtivos, com seguranças fortemente armadas. E não importam as dimensões de maior ou menor movimentação por melhores salários, imediata e violentamente impedida. Exemplificando: no dia 1º de maio de 2009, repressão a manifestação popular registrou mortes de trabalhadores. E também não esquecer cerca de 80% (oitenta por cento) da população haitiana que se encontra desempregada, vivendo, portanto, abaixo da trágica linha da pobreza. Assim, qualquer movimento partindo dessas massas desesperadas e, por isso criminalizadas, provoca violenta repressão militar, automaticamente apoiada pela MINUSTAH.

Tais dilemas não devem esquecer o deplorável e imoral acordo com os Estados Unidos: os produtos brasileiros fabricados no Haiti (obtidos com os vis salários vigentes) estariam isentos de tributos no mercado americano. Inaceitável para o Brasil (país historicamente explorado) a prática do Explorador/Espoliador diante de uma Nação já tão ferida.

Justifica-se, diante dessas constantes mutilações, a esperança: o novo século não mais registra atos imperialistas que, essencialmente, anulam as alternativas econômicas dos países não desenvolvidos.

Prof. de Direitos Humanos da Faculdade de Direito Cândido Mendes
Ex- membro da Comissão Nacional da OAB

 


 

Carta de um telespectador ameaçado de morte


Luis Antonio Baptista*

Jornalista Patrícia Kogut, gostaria de parabenizá-la pelas críticas a este "fenômeno dourado" na sua coluna sobre TV. Não sou fã do Big Brother Brasil, não torço por ninguém, mas não consegui ficar indiferente às imagens violentas e ao texto sobre a transmissão do vírus da AIDS reproduzidos pelo candidato favorito do público. Discordo da análise do psicanalista citado na sua coluna. O sucesso do professor de lutas, formado em educação física, não estaria na sua capacidade de ser o líder da casa. O participante representa, em sua performance, a virilidade e a sagacidade dos vencedores. Essas são qualidades desejadas pelo mercado do capitalismo contemporâneo que não suporta a fragilidade do humano. Mercado que vende formas nunca repetidas de uma almejada potência ao consumidor; uma potência triste, porque feita por vitórias fugazes que não conseguem dissipar a falta nunca saciada, a carência de não se ter e não ser mais. O candidato Marcelo Dourado encarna, para o público, a máscula vitória dos lutadores. Para os fãs ele seria um guerreiro.

Jornalista Patrícia, avalio que o mundo insuportável em que vivemos confunde estrategicamente fragilidade com impotência. No consumo de forças para sermos o vencedor, o outro só poderá ser o aliado para a realização do "meu projeto", ou um possível estorvo a esta meta, ou algo que precisará ser aniquilado. Penso, portanto, que o corpo tenso do candidato, exibindo o desejo de espancar a candidata eliminada do programa, não se restringiria a uma característica pessoal. É preciso, com uma certa urgência, a destituição da autoria destes atos. Em nossos corpos habitam presenças que não nos pedem licença para ocupá-lo; transitam afetos, histórias, marcas do nosso tempo e do tempo de um outro que não conheço. Nosso corpo também é um trabalho incansável sobre tudo isto. A violência entranhada na musculatura do lutador extrapola territórios delimitados por um “eu”, por uma identidade pessoal. Denotar impessoalidade a esta violência possibilita-nos escapar das prescrições moralistas: a violência não estaria nele, nem longe de mim, nem fora dos meus, mas como algo que nos passa, que atravessa espaços heterogêneos fazendo e desenhando corpos e almas de infinitas formas e texturas. A imagem reproduzida na TV apresenta-nos a encarnação da vida fascista. Na tela, atravessando a pele tatuada do candidato favorito do público, presenciamos o corpo de inúmeros assassinos de mulheres, de matadores de homens que desejam homens, de torturadores do passado e da atualidade, de um mercado vendedor de potência, da truculência policial etc. No corpo paranóico do participante preferido pelo público, os músculos contraíam-se indicando que qualquer coisa que imprevisível fosse ameaçaria a sua almejada meta. 

Jornalista Patrícia, a Sra. percebeu o olhar de pavor do candidato no seu momento de fúria? Para a existência paranóica, o medo é o seu oxigênio; a atenção e a curiosidade não lhe servem para nada. Sem o temor, corre-se o risco de cair no abismo, de perder a segurança que lhe fornece o brilho da sua luz sempre ameaçada. O paranóico não é um guerreiro; para ele o mesmo perigo estará sempre ao seu lado ou na sua frente. Os guerreiros sabem que os perigos que irão enfrentar poderão surpreender, são imprevisíveis. Desta forma, as armas e as formas de encarar este desafio serão singulares, por isso são atentos ao mundo e a si mesmos. Nesta era das celebridades que fenecem rapidamente todo cuidado é pouco.

Cara jornalista, neste momento da minha carta é necessário fazer uma ressalva: as considerações mencionadas anteriormente não fazem parte de uma psicopatologia; diferenciam-se das categorias psicológicas que definem a paranóia e o seu individualismo como um mal-estar da civilização. Este modo de existir seria um modo, entre outros, de darmos forma à existência. Formas tramadas, sofridas e enfrentadas pelas artes da política. O que sucede na casa do Big Brother ultrapassa os seus muros cenográficos. A vida fascista é despossuída de um autor específico, de um lugar ou de uma época. É uma modalidade de se viver que não tolera o frágil inacabamento do humano, reduzindo as diferenças a qualidades de tribos, raças, comunidades ou a marcas irreversíveis do humano.  Ela está aí para ser vendida, usada, consumida ou combatida incansavelmente.

A aposta na fragilidade humana nos oferta a curiosidade e a atenção à alteridade, à diferença entendida como possibilidade de contagiar e, consequentemente, de nos incitar a descobrir outros sentidos para o mundo e para as nossas vidas.  Para este modo de existir, a curiosidade aos acontecimentos seria o oxigênio. O outro não seria um adversário, um aliado conivente, nem tampouco um irmão, mas apenas uma possível intensidade.  O vigor do frágil está na amorosa curiosidade por aquilo que o extrapola e radicalmente o faz e o desfaz sem os limites do fim. A fragilidade requer a atenção ao fora de mim e a coragem do pensamento para desfazer-se e fazer-se. É a ética e a estética da amizade. Trata-se de uma aposta, às vezes sofrida, de que a grandeza onipotente do eu ou do corpo são cínicos impostores, uma vez que somos feitos de encontros, de laços, de conexões nunca finalizadas por histórias e pela história.  Frágeis, nunca seremos impotentes.

               Jornalista Patrícia, o candidato, apesar da performance contemporânea, reeditou  a "peste gay" dos anos oitenta, que delegava aos homens que desejam homens a culpa pela  propagação da AIDS. Essa culpa genocida matou muita gente e ainda o faz veladamente, ou não. No Rio de Janeiro do passado uma grande epidemia teve como agente da contaminação os ratos. Estes animais foram caçados e dizimados para estabelecer a saúde da cidade.  Para o integrante favorito do público, formado em educação física, entre uma mulher e um homem não haveria risco de contaminação pelo vírus HIV. Ratos foram mortos no Rio de Janeiro de outrora; homens que desejam homens continuam morrendo assassinados. Mortes que não dizem respeito só a eles, mas a todos nós. O corpo dourado mistura o brilho contemporâneo do mundo das celebridades às sinistras sombras do passado. A suástica inscrita nesse corpo é uma ameaça à vida, à esta força criadora que produz desassossego e atrai nossa atenção para além de nossos próprios umbigos. Destruir a autoria destes músculos tornando este corpo impessoal abre-nos a chance de formular as seguintes questões: o que está acontecendo agora de singular no nosso mundo? O que fazem e o que estamos fazendo das nossas vidas?  Fora vida fascista!!!

*Professor Titular do Departamento de Psicologia da UFF

 

PS: Patrícia, o conceito de vida fascista é criação de um guerreiro chamado Michel Foucault.