Quando se comemora o Dia Internacional dos Direitos Humanos, torna-se importante problematizar alguns fundamentos históricos, filosóficos e políticos das produções que vêm sendo naturalizadas no cotidiano das lutas por esses direitos.
Em primeiro lugar, é comum considerá-los como conquistas da civilização moderna contra a barbárie do mundo antigo, como frutos de uma evolução em direção ao progresso do chamado gênero humano. Entendemos, portanto, ser importante colocar em análise esses termos que, de tão evidentes e repetidos, passam a ser percebidos como verdades tácitas, cabais, inquestionáveis, ahistóricas, atribuindo-lhes determinadas essências. Vamos priorizar aqui alguns desses termos, tais como barbárie, civilização, evolução, progresso, direitos e humano, embora outros pudessem ser aqui apresentados.
Segundo Foucault (1979), a história clássica e oficial que nos tem sido ensinada é concebida como uma marcha contínua dos acontecimentos históricos em direção a uma teleologia que representaria o progresso, a civilização, ou mesmo, o fim da história. Assim, estágios antecedentes nos levariam obrigatoriamente a um futuro de perfeição ou à aproximação gradativa do que deve ser a perfeição. O mundo burguês nos faz acreditar nas qualidades da civilização moderna, desqualificando tudo o que o precedeu – o que se pode chamar de etnocentrismo histórico. Ou seja, o nosso presente no mundo ocidental – a partir de certos parâmetros valorativos – julga, hierarquizando, as diferentes histórias dos povos, inclusive a nossa própria história.
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Foucault (2002) caracteriza este momento da sociedade disciplinar, em especial a partir do final do século XVIII, como o “fazer viver e deixar morrer”, quando cada vez mais necessitamos que muitos morram para que outros possam viver. Por isso, precisamos jogar para fora do nosso tempo e atribuir ao “passado bárbaro” o horror que hoje vivemos: os genocídios, os extermínios, os doentes negligenciados, as torturas, como se toda uma tecnologia que nos apregoa o bem-estar ou, na linguagem neoliberal, a qualidade de vida e a tal auto-estima, não estivesse também a serviço deste biopoder racista que diz servir à vida à custa da mortificação da maioria da população do planeta. Entendemos, assim, que civilização e barbárie não se opõem, fazendo parte do funcionamento da sociedade capitalista.
Historicizando Direitos Humanos
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Os ideais da Revolução Francesa – igualdade, liberdade e fraternidade – palavras de ordem da burguesia em ascensão, tornaram-se, a partir do fim do século XVIII, os fundamentos dos chamados direitos humanos. Produzidos pelo capitalismo como um dado natural, tornaram-se, portanto, sinônimos de direitos inalienáveis da essência do que é ser homem. Tem-se, então, um determinado ‘rosto’ para os direitos humanos desde a primeira grande declaração produzida no âmbito da luta realizada pela burguesia contra a aristocracia francesa, em 1789, até a mais recente declaração, a de 1948, quando, após a Segunda Grande Guerra Mundial, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU) em pleno período da chamada ‘guerra fria’. Estão presentes nessas duas grandes declarações – que se tornaram marcos para a história da humanidade – os direitos, em realidade, reservados e garantidos para as elites. Um dos mais defendidos e, em nosso mundo, considerado sagrado, é o direito à propriedade, garantido apenas para os que a possuem. Os direitos humanos, portanto, têm apontado quais são esses direitos e para quem eles devem ser concedidos.
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Deleuze (1992) afirma que os direitos humanos – desde sua gênese – têm servido para levar aos subalternizados a ilusão de participação, de que as elites preocupam-se com o seu bem-estar, de que o humanismo dentro do capitalismo é uma realidade e, com isso, confirma-se o artigo primeiro da Declaração de 1948: “todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Entretanto, sempre estiveram fora desses direitos à vida e à dignidade os segmentos pauperizados e percebidos como ‘marginais’: os ‘deficientes’ de todos os tipos, os ‘desviantes’, os miseráveis, dentre muitos outros. A estes efetivamente, os direitos, assim como a dimensão humana, sempre foram – e continuam sendo – negados, pois tais parcelas foram produzidas para serem vistas como ‘subalternas’ ou como não-pertencentes ao gênero humano. Não há dúvida, portanto, que esses direitos – proclamados pelas diferentes revoluções burguesas, contidos nas mais variadas declarações – tenham construído subjetividades que definem para quais humanos os direitos devem se dirigir. Os marginalizados de toda ordem nunca fizeram parte desse grupo que, ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, tiveram e continuam tendo sua humanidade e seus direitos garantidos.
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O surgimento de uma concepção do humano e da universalização dos direitos não se deu da forma tão grandiosa e afirmativa como nos querem fazer acreditar as revoluções burguesas e suas declarações. Naquele mesmo período, no século XVIII, foi necessário dar visibilidade científica ao chamado indivíduo perigoso, através do saber médico e da reforma das práticas de punição para que uma nova forma de ordenação social pudesse se manter: a normalização das populações.
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E o que constituiria a norma senão um conjunto de regras morais que impõem sua existência pela possibilidade de sua infração? Eis o que nos aproxima do pensamento de Alain Badiou (1999), quando ele nos diz que se a experiência do inumano é clara, a do humano é obscura, tendo em vista que é “o humano que delimita o ponto de aplicação dos direitos do homem” (pp.47-48), sendo o homem uma dupla negação, aquele que não é inumano. Ou seja, nos acostumamos a pensar sempre a partir da negação e do território da falta.
Queremos, entretanto, afirmar aqui um direito e uma humanidade positivada enquanto processos imanentes, não definidos, não dados e não garantidos necessariamente pelas leis que vêm se tornando cada vez menos jurídicas e –cada vez mais normativas – mas que, por isso mesmo, precisam afirmar a vida em toda a sua potência de criação. A desnaturalização dos conceitos de direitos e de humano implica em um desafio permanente para todos nós no sentido de inventar novas práticas e novos mundos.
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Reafirmamos que, se não entendemos os direitos e o humano como objetos naturais, obedecendo a determinados modelos que lhes seriam inerentes, podemos produzir outros direitos humanos: não mais universais, absolutos, contínuos e em constante evolução; mas a afirmação de direitos locais, descontínuos, fragmentários, processuais, em constante movimento e devir, múltiplos como as forças que os atravessam e os constituem. Enfim, a afirmação da jurisprudência no lugar da lei, como nos propõe Deleuze (2008).
No Brasil, a luta pelos direitos humanos emerge com força nos movimentos contra a ditadura militar. Surgem com os chamados novos movimentos sociais que se efetivam ainda na segunda metade dos anos 1970, com práticas que começaram a rechaçar os movimentos tradicionalmente instituídos e que politizaram o cotidiano nos locais de trabalho e moradia, inventando novas formas de fazer política. Vieram quando “novos personagens entraram em cena” (Sader, 1988), quando emergiram “novos sujeitos políticos” que, no cotidiano, lutavam por melhores condições de vida, trabalho, salário, moradia, alimentação, educação, saúde e pela democratização da sociedade. Esses movimentos começaram a existir com os próprios “estilhaços” que resultaram das derrotas impostas aos movimentos sociais com o golpe de 1964 e com o AI5, em 1968. Seus “sobreviventes”, ao resgatar criticamente as várias experiências de oposição nos anos de 1960 e 1970, fizeram emergir nos bairros e, logo a seguir, nas fábricas, ‘novas políticas’ que substituíram as tradicionalmente utilizadas. Sobretudo, das crises da Igreja, das esquerdas e do sindicalismo – que a ditadura acirrou e aprofundou – surgiu uma série de movimentos sociais produzindo novos caminhos.
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Estado Penal e Estado de Exceção
Apesar das chamadas boas intenções presentes na defesa dos direitos humanos e na importância que a ela vem sendo atribuída, sua concepção e práticas hegemônicas, oficiais ou não, são dominadas pelo “problema do Mal e pela figura da vítima” (Badiou, 1999, p. 47). Daí a produção de palavras de ordem ancoradas na negação e na falta, tais como “socorrer as vítimas e assegurar o direito dos homens contra o sofrimento” (idem). Tais princípios têm fundamentado e garantido tanto a constituição das leis e o exagero de sua multiplicação, quanto as chamadas intervenções humanitárias. Estas vêm se afirmando como mercadoria de consumo que se vende a bons preços no mercado capitalístico de direitos humanos. Tem sido, também, dentre várias outras, uma das mais insidiosas capturas às quais os movimentos sociais na atualidade vêm se submetendo. Trata-se, portanto, de um conjunto de movimentos punitivos que buscam a maximização do Estado penal e o fortalecimento do Estado de exceção.
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Diante dessas constatações, podemos nos perguntar: por que a prisão venceu? Comparando-se com a velocidade das novas tecnologias (biotecnologia, robótica, dentre outras), há a permanência/fortalecimento/expansão de uma das mais antigas “instituições de sequestro” (Foucault, 2005) que permanece sendo aperfeiçoada pela cultura punitiva, tornando-se cada vez mais robusta em suas práticas de sequestro: a prisão.
No momento em que a prisão passa a ser o instrumento principal de castigo torna-se necessária a construção de uma máquina jurídica e judiciária forte, configurada nos procedimentos dos tribunais, de seus especialistas em políticas penais e em comportamentos e virtualidades humanas.
Com a complexidade crescente dessas práticas, assistimos hoje a diversas intermediações jurídicas presentes nas mais diferentes relações, caracterizando um cotidiano juridiciarizado. Assistimos, também, à constante busca de punições e de penas mais duras e severas como garantia de manutenção da ordem social.
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Essa cultura vem se fortalecendo após o 11 de setembro. A crença no policiamento ostensivo, na baixa da idade penal, na prisão perpétua, na pena de morte “sem dor”, na tortura light como mal menor necessário, nos interrogatórios mais humanos, nos extermínios massivos, principalmente nos territórios perigosos da pobreza. Todas essas práticas iniciadas nos Estados Unidos desde os anos de 1970, com a política de tolerância zero e o encarceramento em massa, ao globalizar-se prenunciam o Estado Penal que irá inaugurar o terceiro milênio. Hoje vivemos subjetividades cujo eixo gira única e exclusivamente em torno da garantia de nossa segurança privada. Por isso, clamamos pela humanização do Estado de Exceção, pela reforma de seus dispositivos policiais e por mais leis, que em realidade nos tutelam e nos constrangem. Aí está a certeza da nossa segurança – a existência das leis que devem ser cumpridas.
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Precisamos de uma invenção ética para os Direitos Humanos
Será que precisamos realmente buscar transcendência para as práticas em nosso cotidiano? Estaríamos perdidos sem a referência de uma transcendência qualquer, uma entidade separada de nós, a palavra de ordem de um universal, como a aceitação de o Bem e a rejeição de o Mal, fundamentos necessários à regulação dos comportamentos humanos? Sabemos que o Mal – considerado por Platão como simulacro, sempre percebido como risco de degradação – acaba sendo construído historicamente como coisa em si, absoluta e universal. Ou seja, dentro da visão platônica somente o Bem habitaria o mundo perfeito e ideal das essências. Esta é uma das questões éticas da maior importância.
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A dificuldade maior está em como podemos nos tornar sujeitos de práticas éticas em nosso dia a dia sem nos reduzirmos aos códigos e restrições existentes em qualquer sociedade. Como discernir entre atitudes passivas de submissão, subserviência e constrangimento das atitudes ativas das práticas de liberdade? Como, em meio às relações de poder que, muitas vezes nos oprimem e tornam esse mundo insuportável, estabelecer relações de cuidado de si e dos outros (Foucault, 2008), sem esperar recompensa ou castigo? Um devir ético da imanência não se processa apenas nas lutas contra forças negativas do mundo: o abuso de poder, a menorização e desqualificação do outro, todo tipo de racismo que nos atravessa liquida a vida. Sem dúvida, tais lutas são absolutamente necessárias, direitos precisam ser constantemente conquistados e não simplesmente “resgatados” como algo perdido que sempre esteve lá, em algum lugar, esperando para ser encontrado. É isto que constrói a figura nefanda da vítima, tão cara ao opressor.
Por isso, entendemos que o Dia Internacional dos Direitos Humanos não é algo apenas para ser lembrado e celebrado. Pode ser um instrumento ativo de transformação das práticas que ainda hoje, em nome dos direitos humanos, trazem a marca essencialista. Diferentemente, esse Dia deve ser utilizado como uma estratégia de transvaloração do direito e do humano. Ou seja, não se trata de resgatá-lo, mas de afirmar essa conquista como algo que sempre requer as forças ativas das lutas agônicas que travamos conosco mesmos, para que possamos nos construir criadores de possibilidades, como nos ensina Badiou (1999), numa atividade constante do desassossego que constitui a maravilha do viver.
Portanto, mais uma vez, nos aliamos a Deleuze quando nos diz:
Acreditar no mundo é o que nos falta: nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volumes reduzidos (...). É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistênci ou, ao contrário, a submissão a um controle. Necessita-se ao mesmo tempo de criação e povo. (DELEUZE,1992, p.218).
Notas
1 - Utilizamos tal neologismo para afirmar que tanto o aparelho jurídico quanto o judiciário são faces da mesma moeda, funcionando articuladamente.
2 - Podemos aqui apontar dois momentos dessa defesa de práticas de tortura justificadas em função da vida. Um primeiro, na voz do General Paul Aussaresses, ex-agente do serviço secreto da França, veterano das guerras do Vietnã e da Argélia, que colaborou com o regime militar brasileiro, ensinando aos oficiais técnicas de tortura e de combate à guerrilha e que também atuou no golpe contra Salvador Allende, no Chile. Em seu livro Je n’ai pas tout dit: ultimes révélations au Service de la France ele justifica a tortura como necessária para “evitar a morte de inocentes”. Uma segunda defesa da tortura aparece em atos que vêm sendo aprovados no Congresso Norte-americano.
3 - Sobre o tema consultar Wacquant (2001 a, 2001 b, 2001 c)
4 - Para Platão o mundo perfeito e ideal é a única realidade. O mundo sensível, aquele que habitamos, é o mundo das cópias imperfeitas, das ilusões. Sobre o assunto consultar Fuganti (1999) Deleuze (2002).
* Este artigo na íntegra, assim como a Bibliografia utilizada, foi publicado na
nRevista Psicologia Clínica da PUC/RJ, vol.20.2, 2008