JORNAL DO GRUPO TORTURA NUNCA MAIS / RJ - ANO 23 - N° 69 - agosto 2009 |
Guerrilha do Araguaia O Brasil e a responsabilização dos
Entre esses países é frequente encontrar leis de anistias, elaboradas antes ou durante a volta aos regimes democráticos, promovidas pelos agentes responsáveis pelas graves violações, sob o pretexto da promoção da “reconciliação nacional”. Aprovadas ou decretadas quando ainda estava vigente o regime ditatorial, momento em que a sociedade civil e a comunidade política ainda sofriam restrição real para articular mecanismos eficientes de imposição de idéias e ideais, a ampla maioria das citadas leis de Anistia, foram clara e explicitamente leis de auto-anistias (como ocorreu no Chile, Perú, El Salvador, Guatemala, Argentina, Uruguai etc). No Brasil, diferentemente, a Lei de Anistia, ainda que de forma bastante restrita, anistiou aos civis que resistiram à ditadura militar. No entanto, a subjetiva e perspicaz confusão na interpretação do texto da Lei, utilizando “os crimes políticos e os crimes conexos aos políticos”, sacramentou uma interpretação equivocada e conveniente, na qual a mesma lei teria anistiado aqueles que em nome da ditadura militar cometeram crimes comuns contra civis. E, ainda que de forma totalmente errônea, a Lei de Anistia foi por mais de uma década utilizada como obstáculo legal para garantir a impunidade dos crimes, nas poucas ações judiciais que buscaram responsabilização. Mais recentemente juristas reconhecidos esclareceram publicamente que a interpretação política, e nada jurídica, não deve ser utilizada para impedir investigações criminais dos fatos relacionados à ditadura militar. A Ordem dos Advogados do Brasil propôs uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) perante o Supremo Tribunal Federal com o objetivo de esclarecer que a Lei de Anistia não se aplica aos crimes cometidos pelos agentes do Estado. No âmbito desta ação, entidades da sociedade civil apresentaram pareceres (“amicus”) com argumentos jurídicos e políticos que reforçam a tese da OAB. A Corte e Comissão interamericanas rechaçaram categoricamente, como contrária à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a aplicação de leis de anistia nos casos relacionados com graves violações de direitos humanos e têm instado aos Estados a conformar suas legislações nacionais com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, deixando “nulas e inválidas” as leis de anistia geral. ______________________________________________________________________________________________________
Entre os anos de 1972 e 1975, sob o comando do governo central do regime militar brasileiro, as Forças Armadas realizaram uma série de operações militares na região sul do estado do Pará, na divisa com os estados do Maranhão e Tocantins, com o objetivo de erradicar a denominada Guerrilha do Araguaia. Durante as operações, os agentes públicos e seus cúmplices foram autores de graves violações aos direitos humanos – como detenções ilegais e arbitrárias, torturas, execuções sumárias e desaparecimentos forçados – as quais estavam inseridas em um padrão sistemático e generalizado de repressão política contra opositores políticos e população civil. Beatriz Affonso – Diretora do Programa do CEJIL para o Brasil _________________________________________________________________________________________
Notas do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro
I
No último dia 03 de junho, o Ministro da Defesa, Sr. Nelson Jobim, convocou alguns poucos familiares de mortos e desaparecidos políticos e membros da Comissão Especial da Lei 9140/95 para uma reunião, na sede do Ministério da Defesa, em Brasília. O objetivo desse encontro era informar aos presentes da edição da Portaria nº 567, de 29/04/2009, designando um Grupo de Trabalho com a finalidade de coordenar "as atividades necessárias para a localização, recolhimento e identificação dos corpos dos guerrilheiros e militares mortos no episódio conhecido como Guerrilha do Araguaia". O General Brandão, chefe do Serviço de Informação do Exército brasileiro, também estava presente à reunião, o que a nosso ver foi uma tentativa perversa de constrangimento aos familiares presentes. A edição da referida portaria não só atropela as atribuições da Comissão Especial da Lei 9.140/95 – que tem competência legal para coordenar os trabalhos de localização e identificação dos corpos dos militantes políticos – como entrega a coordenação ao General Mário Lúcio Alves de Araújo, comandante do 23º Batalhão de Infantaria de Selva, que em entrevista ao jornal "O Norte de Minas", publicada em 31 de março de 2009, declarou "(...) há exatos 44 anos o Exército brasileiro atendendo a um clamor popular foi às ruas contribuindo substancialmente e de maneira positiva, impedindo que o Brasil se tornasse um país comunista". Não reconhecemos a legitimidade deste Grupo de Trabalho, de caráter militar, executada e comandada pela 23ª Brigada de Infantaria de Selva, que teve importante papel no massacre à Guerrilha do Araguaia e foi co-responsável pelas torturas, execuções, mortes e ocultação de cadáveres dos guerrilheiros. Entendemos que o papel das Forças Armadas nesse processo é o de fornecer as informações que estão nos seus arquivos e que já deveriam ser do conhecimento de todos os brasileiros. É importante frisar que a formação desse malfadado grupo de trabalho, assim como as publicações de parte do arquivo considerado como pessoal do militar Sebastião Curió Rodrigues de Moura, Major Curió – um dos repressores à Guerrilha do Araguaia –, veiculadas no Jornal Estado de São Paulo, em 21 e 22/06/09, não podem ser vistas como uma coincidência. O governo brasileiro está sendo, no momento, obrigado a responder sobre as circunstâncias das mortes e desaparecimentos, como a localização dos corpos dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia tanto pela justiça nacional como internacional. Há, inclusive, uma representação junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA sobre o assunto. Por tudo isto:
Pela Vida, Pela Paz, Rio de Janeiro, 23 de junho de 2009
______________________________________________________________________ II
Pode-se enganar todas as pessoas por algum tempo
Com perplexidade e indignação, as entidades de direitos humanos e familiares de mortos e desaparecidos políticos tomaram conhecimento da criação do Comitê Interinstitucional de Supervisão das atividades do Grupo de Trabalho criado pelo Ministério da Defesa, que busca localizar e identificar os corpos dos guerrilheiros na região do Araguaia. Este Comitê, sancionado pelo Presidente da República através do Decreto de 17 de julho de 2009, tem como objetivo fiscalizar as atividades do Grupo de Trabalho acima mencionado. Apesar da composição do Comitê e do Grupo de Trabalho contar com a participação de diferentes pessoas e entidades, a estrutura, a forma e a lógica de funcionamento continuam as mesmas, já que ambos são coordenados pelo Ministro da Defesa. Esta nova composição, a nosso ver, em nada garante a transparência das investigações, pois curiosamente é o próprio Ministério da Defesa que coordena e fiscaliza suas próprias investigações. Não podemos esquecer que toda essa mis-en-scène vem sendo orquestrada, nesses últimos dois meses, em função de pressões nacionais e internacionais, como a sentença promulgada, em 2003, pela juíza Dra. Solange Salgado, que intimou o governo brasileiro a esclarecer as circunstâncias e a localização dos restos mortais dos guerrilheiros do Araguaia. Da mesma forma, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA considerou como crime continuado o fato do governo brasileiro não ter tomado as providências cabíveis para a elucidação de tais violações. É importante frisar que os vários governos pós-ditadura civil-militar ignoraram, sistematicamente, a existência desse processo iniciado, em 1982, por 22 familiares. Por tudo isso, lamentamos profundamente que alguns companheiros estejam participando deste Comitê Interinstitucional acreditando nas “boas intenções” do governo federal. Diante das considerações acima, exigimos que: Pela Vida pela Paz
Rio de Janeiro, 22 de julho de 2009 ________________________________________________________________ III Indignados e perplexos, tomamos conhecimento da participação do Sr. Carlos Hugo Studart Corrêa como Observador Independente do Comitê Interinstitucional de Supervisão das atividades do Grupo de Trabalho criado pelo Ministério da Defesa, que busca localizar e identificar os corpos dos guerrilheiros na região do Araguaia. Surpreendentemente, seu nome foi indicado como pesquisador pela Universidade de Brasília – UNB, por decreto do Ministro da Defesa publicado no Diário Oficial da União, nº 131, de 13 de julho de 2009. Neste mesmo decreto, consta como Comandante da Equipe de Apoio Logístico, o General de Brigada, Mário Lúcio Alves de Araújo, comandante do 23º Batalhão de Infantaria de Selva que, como já assinalado em nota anterior, em entrevista ao jornal "O Norte de Minas", publicada em 31 de março de 2008, declarou "(...) há exatos 44 anos o Exército brasileiro atendendo a um clamor popular foi às ruas contribuindo substancialmente e de maneira positiva, impedindo que o Brasil se tornasse um país comunista". No que se refere ao Sr. Hugo Studart, nossa surpresa se prende ao fato de que em seu livro “A Lei da Selva” (Geração Editorial, 2006) – produto de sua dissertação de mestrado defendida em 2005, na UNB – deixa claro o acordo que fez para manter o anonimato dos militares que participaram diretamente dos crimes cometidos na região do Araguaia contra os guerrilheiros e a população local. Afirma ele: “A condição exigida, respeitada, implicou citar os militares colaboradores por codinomes” (p. 23, nota de rodapé 43). Além disso, informa que teve acesso a “documentos oficiais das Forças Armadas” como “mapas, relatórios de ações, ordens de batalha” (p.23), assim como o que chamou de Dossiê Araguaia “elaborado por militares entre 1998 e 2001” (p.23). Este Dossiê teve como coordenador geral um coronel “hoje na reserva, que doravante conheceremos pela identidade fictícia de George Costa, o Dr. George, codinome que de fato usava durante a Guerrilha do Araguaia” (p.31). É importante assinalar que os familiares e as entidades de direitos humanos jamais tiveram acesso a esses documentos, apesar da luta de mais de 20 anos pela abertura ampla, geral e irrestrita dos arquivos da ditadura. Indagamos se esse tipo de pesquisa histórica contribui para a sociedade brasileira conhecer criticamente parte de sua história recente. A nosso ver, tal trabalho continua mantendo na obscuridade e nas sombras os responsáveis pelos crimes contra a humanidade cometidos em nome da segurança nacional. Fortalece, também, a idéia de que “o ponto essencial é desvendar o destino dos mortos e desaparecidos” (p.19), o que vai de encontro com a atual proposta governamental através da formação do Grupo de Trabalho e do Comitê de Supervisão. Entendemos que a história não pode se resumir apenas à entrega dos restos mortais de todos os opositores políticos da ditadura civil-militar. É fundamental que possamos conhecer o que aconteceu, como aconteceu, quando aconteceu, onde aconteceu e quais os responsáveis pelas atrocidades cometidas pelo Estado terrorista implantado, em nosso país, em 1964. Outra questão refere-se ao fato de que o Sr. Studart ao afirmar ter conhecimento de documentos e informações ainda hoje secretos, relata acontecimentos que nunca estiveram presentes nos depoimentos colhidos pelas várias caravanas de familiares e pelo Ministério Público Federal, em 2001, na região do Araguaia, assim como por diferentes pesquisadores do tema. Em seu artigo “A Guerra Acabou”, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 06/07/09, (p. A2) afirma que “(...) três guerrilheiros que se entregaram, foram poupados e receberam novas identidades: Hélio Navarro de Magalhães, Antônio de Pádua Costa e Luiz René Silva”. Em nenhum momento revela as fontes e documentos comprovando tais afirmações. Essa prática de informar sem apresentar as fontes e os documentos ditos secretos está presente em várias reportagens, publicações e depoimentos de militares e colaboradores do aparato de repressão. Em realidade, tem servido para confundir e desinformar, desqualificando a memória e a luta dos opositores políticos. Além disso, submete os familiares e amigos a um “crime continuado”, torturando-os, provocando mais dor e sofrimento. É, ainda, uma tentativa perversa de enfraquecer a militância dos familiares e das entidades de direitos humanos em busca da justiça e da afirmação de outras memórias. Por tudo isto, continuamos reafirmando nossa posição de repúdio ao Grupo de Trabalho e ao Comitê de Supervisão cuja composição e funcionamento não merecem a nossa confiança e o nosso apoio. Exigimos, portanto, a formação de um novo Grupo de Trabalho sob a coordenação da Secretaria Especial de Direitos Humanos, como já proposto em nota anterior. Pela Vida, Pela Paz!
Rio de Janeiro, 05 de agosto de 2009 _____________________________________________________________________________________________
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