Introdução: visitando a ONU.
Em maio de 2001, pela primeira vez em sua história, o Brasil foi chamado a comparecer diante do Comitê Contra a Tortura da ONU, que funciona em Genebra. Formado por dez membros consultores, pessoas de diferentes países que têm trabalhado na área , este Comitê havia recebido, em junho de 2000, relatório oficial do governo brasileiro sobre a situação da tortura no país.
É importante esclarecer que a “Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes” votada pela Assembléia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1984, somente entrou em vigor em 26 de junho de 1987 . O Brasil assinou esta Convenção, em 1989 e, como reza o regimento, deveria entregar à ONU um relatório sobre a tortura no país, no ano seguinte, ou seja, em 1990. Somente apresentou este relatório dez anos depois, em 2000, sem qualquer discussão e sem o conhecimento das entidades de direitos humanos do país.
Vários membros do Comitê da ONU se referiram a esse atraso e em suas Conclusões e Recomendações este Comitê assim se pronunciou:
“ (…) este relatório, que deveria ter sido submetido em outubro de 1990, chegou com excessivo atraso de 10 anos. O Brasil ratificou a Convenção em 28 de setembro de 1989, sem nenhuma reserva (…)”. (Comitê Contra a Tortura, 2001, p.01)
Uma série de temas foram tratados no encontro: as limitações da Lei 9.140/95 ; membros do aparato de repressão – que existiu durante a ditadura militar – ocupando hoje cargos de confiança em diferentes governos municipais, estaduais e federal ; vários casos de tortura em dependências policiais federais e estaduais, em presídios, hospitais psiquiátricos e estabelecimentos voltados para os chamados jovens “ perigosos” , assim como torturas que vêm ocorrendo hoje em quartéis das Forças Armadas . Foram debatidas também várias questões relacionadas ao funcionamento de diferentes dependências policiais e prisionais, cujo cotidiano fere as leis vigentes em nosso país .
Além desta rápida visão geral dos principais temas tratados no Comitê Contra a Tortura da ONU na presença de algumas entidades de direitos humanos brasileiras e diante de representantes do governo federal , como participante desses debates, como psicóloga e militante na área dos direitos humanos, tenho a intenção de iniciar com esse texto um debate. Com ele, talvez consiga incitar, em especial a área psi, a colocar em análise o que vem sendo chamado de “violência doméstica” , articulando-a com a questão da violência institucionalizada hoje no Brasil.
Para começar este debate considero importante trazer, com o auxílio da história, um pouco da prática da tortura em nosso país, em especial durante o último período autoritário (1964-1985), assim como algumas considerações sobre a lei que criminalizou esta prática, questões que foram bastantes discutidas no Comitê da ONU.
Tortura na História do Brasil.
A prática da tortura que percorre, até hoje, toda a história do nosso país foi durante séculos utilizada em quase todo mundo, como um exercício de vingança contra os corpos daqueles que se insurgiam contra o poder e a força do Rei. Daí, os suplícios públicos, assistidos como espetáculos na antiguidade, nos períodos medieval e moderno.
O uso sistemático da tortura, na Europa, ocorreu após o século XI, atingindo seu apogeu entre os séculos XIII e XVIII, com a Inquisição .Segundo Foucault (1988), naquele período, apesar dos suplícios serem públicos, todo o processo criminal, até a sentença, permanecia secreto, não só para a população, mas para o próprio acusado.
Em nossa história colonial são conhecidas as torturas infligidas aos escravos, índios – que não eram considerados humanos – e aos “perigosos” de todos os tipos, como aqueles perseguidos pela Inquisição, e os que praticaram crimes de “lesa majestade”, ou seja, contra a Coroa Portuguesa.
Segundo Foucault (1988) é com o advento do capitalismo industrial, no final do século XVIII e início do XIX, que as “grandes fogueiras” e a “melancólica festa” das punições vão se extinguindo (Foucault, p.14).
Os suplícios saem do campo da percepção quase cotidiana e entram no da “consciência abstrata”: é a era da “sobriedade punitiva”, quando não é mais para o corpo que se dirige a punição, mas para a alma, devendo atuar “profundamente sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições”. Assim, a premissa básica dos tempos modernos é: “que o castigo fira mais a alma que o corpo” (Idem, p.21).
Ou seja, não só os atos praticados serão objetos de punição, mas também aqueles que poderão vir a ser efetuados, dependendo da “alma” do sujeito: se ex-escravo, negro, mestiço, migrante, pobre. Inaugura-se a era da periculosidade, onde determinados segmentos por sua “alma”, sua essência, sua natureza deverão ser constantemente vigiados, disciplinados, normatizados. Entramos, segundo Foucault, nas sociedades disciplinares onde as instituições exercerão vigilância intensa, produzindo corpos dóceis, adestrando não só o físico, mas fundamentalmente os espíritos.
Entretanto, ao lado do dispositivo da periculosidade continua, ao longo de todo o século XX, existindo no Brasil e em muitos outros países, também o da tortura. Não mais para os escravos, mas para os “diferentes”, “criminosos”, “marginais”, “perigosos” ; ou seja, para os pobres em geral.
A tortura – que, ao longo de todo século XX, foi cotidianamente utilizada contra os “desclassificados” sociais – especialmente a partir do AI-5 (13/12/68), passou a ser também aplicada aos opositores políticos da ditadura militar
Apesar da implantação em 1964 de um governo de força, somente a partir do AI-5 é que a tortura se tornou uma política oficial de Estado. A vitória da chamada “linha dura”, o golpe dentro do golpe instituíram o terrorismo de Estado que utilizou sistematicamente o silenciamento e o extermínio de qualquer oposição ao regime. O AI-5 inaugurou também o governo Médici (1969-1974), período em que mais se torturou em nosso país.
Em seu livro de memórias ,o ex-presidente Geisel ( 1974 – 1979) afirmava:
“(…)que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter informações. (…) no tempo do governo Juscelino alguns oficiais, (…) foram mandados à Inglaterra para conhecer as técnicas do serviço de informação e contra-informação inglês. Entre o que aprenderam havia vários procedimentos sobre tortura. O inglês, no seu serviço secreto, realiza com discrição. E nosso pessoal, inexperiente e extrovertido, faz abertamente. Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior.” ( O Globo, 1997, p.12, grifos meus ).
Em 1971, foi elaborado pelo Gabinete do Ministro do Exército e pelo seu Centro de Informações (CIEx) um manual sobre como proceder durante os interrogatórios feitos a presos políticos. Alguns trechos apontavam que:
“(…) O interrogatório é uma arte e não uma ciência (…). O interrogatório é um confronto de personalidades. (…) . O fator que decide o resultado de um interrogatório é a habilidade com que o interrogador domina o indivíduo, estabelecendo tal advertência para que ele se torne um cooperador submisso (…). Uma agência de contra-informação não é um tribunal da justiça. Ela existe para obter informações sobre as possibilidades, métodos e intenções de grupos hostis ou subversivos, a fim de proteger o Estado contra seus ataques. Disso se conclui que o objetivo de um interrogatório de subversivos não é fornecer dados para a justiça criminal processá-los; seu objetivo real é obter o máximo possível de informações. Para conseguir isso será necessário, frequentemente, recorrer a métodos de interrogatório que, legalmente, constituem violência. É assaz importante que isto seja bem entendido por todos aqueles que lidam com o problema, para que o interrogador não venha a ser inquietado para observar as regras estritas do direito (…). ( ALERS, 1988, p. 285, grifos meus).
Para que a engrenagem da tortura funcionasse, e ainda hoje funcione, de forma azeitada e produtiva foram, e ainda são, necessários muitos outros elos. Muitos profissionais como psicólogos, psiquiatras, médicos legistas, advogados, dentre outros respaldaram, e ainda hoje continuam respaldando, tecnicamente os terrorismos de Estado em diferentes países, assessorando práticas de exclusão com suas ações e saberes. A história da participação ativa de muitos desses profissionais no Brasil ainda está para ser escrita.
A Lei 9.455/97: a quem tem servido ?
A referência à prática da tortura aparece pela primeira vez na legislação brasileira somente em nossa última Constituição, a de 1988 – já em final do século XX! Apesar disso, foi colocada na Carta Magna ao lado dos crimes de terrorismo e tráfico de drogas .
Somente quase 10 anos depois de criminalizada em nossa Constituição é que a prática de tortura foi tipificada pela lei 9.455, de 07 de abril de 1997.
Uma questão levantada por alguns membros do Comitê Contra a Tortura da ONU refere-se ao aspecto “amplo” dessa lei. O próprio relator do caso brasileiro, o português Henrique Gaspar, assinalou a incompatibilidade da lei 9 455/97 com a definição de tortura dada pela ONU pelo fato de que a lei não se refere a agentes do Estado ou a funcionários públicos. Segundo o artigo 1 º da “ Convenção da ONU Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes” , a tortura vem sendo conceituada como:
“Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência” . (Dallari, 1992, p. XXII , grifos meus).
A lei brasileira é totalmente omissa em relação a quem inflige a tortura, aceitando atos praticados por agentes não estatais atuando em suas capacidades privadas. O seu artigo 1 º diz que: “Constitui crime de tortura submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência (…), a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo a esta pessoa”. Ou seja, não se fala de agentes do Estado. O relator Henriques Gaspar também afirmou que esta lei traz efeitos perversos, debilitando as ações contra as torturas cometidas pelo Estado e a própria concepção que se tem de tortura. Em realidade ela tem servido à manutenção da impunidade dos crimes cometidos por agentes do Estado.
Segundo o Conselho Nacional dos Procuradorores – Gerais da Justiça, desde que esta lei foi sancionada tivemos, até maio de 2001, 258 casos registrados de denúncias de tortura. Destes, 56 foram transformados em inquéritos policiais. Desses inquéritos, somente chegaram a julgamento 18 casos. Desses, somente houve condenação em um que chegou a julgamento em última instância.
Não é por acaso que este único caso de condenação de tortura em nosso país, seja o de uma babá que, em junho de 2000, no Rio de Janeiro, foi flagrada espancando um menino de dois anos, do qual deveria cuidar. Enquanto isso, as centenas de torturas praticadas nos mais diferentes estabelecimentos públicos – como delegacias, presídios, manicômios, hospitais, abrigos, etc – continuam impunes.
A prática da tortura – caracterizada no relatório do Relator Especial da ONU, Sir Nigel Rodley, como “ sistemática, disseminada e generalizada” – continua vigindo no Brasil.
A chamada Violência “Doméstica”
Diante de tal quadro, é curioso assistirmos, em especial nos últimos anos, nos mais diferentes meios de comunicação de massa, em comunicações, seminários e encontros, numerosas campanhas contra a chamada “ violência doméstica” e os maus tratos e abusos cometidos contra crianças, adolescentes e mulheres. A ênfase dada a essas campanhas tem sido grande, inclusive com a criação de locais para atendimentos à pessoas afetadas por tais violências, o que é importante e necessário. Entretanto, sobre a violência praticada por agentes do Estado, a violência institucionalizada, há um total silêncio, uma total desinformação e, mesmo, omissão, conivência e descompromisso por parte dos órgãos do Estado .
Têm sido constantes os apelos, tais como:
“No Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, instituído no ano passado, o silêncio foi apontado como o principal problema a ser enfrentado (…) Além da omissão de parentes, vizinhos e amigos, o governo e a sociedade enfrentam a falta de informações (…)” (O Globo, 2001, p. 12)
“A violência é considerada um grave problema de saúde pública no Brasil, constituindo hoje a principal causa de morte de crianças e adolescentes (…) colabora também o pacto de silêncio nos lares (…)” (Fiocruz, 2001, p.7).
Não estamos desmerecendo e/ou mesmo diminuindo o grave problema da violência e dos abusos praticados contra crianças, adolescentes e mulheres que ocorrem, principalmente, nos lares, espaço secularmente e socialmente sacralizado, considerado longe da violência e produzido como “doméstico” e, por isso mesmo, enfatizado como o território da privacidade. Esta questão deve ser comentada, denunciada e tratada, pois entendemos que não é uma questão privada; ao contrário, trata-se de um problema público que deve, inclusive, ser enfrentado pelas autoridades e ser preocupação das políticas públicas. Ao se colocar esse tipo de violência no espaço doméstico, no território do privado, retira-se todo o seu caráter político-social, encarcerando-o num terreno facilmente psicologizante, familiarizante e intimizante. Será por isso que muitos psi implicam-se com essas campanhas ? Por que vem sendo produzido esse caráter “privado” e “ doméstico” para esse tipo de violência ? Por ter tais caracteristicas ele não estaria, portanto, diretamente ligado ao trabalho do profissional psi ? Já a violência institucionalizada não diria respeito mais ao político ? Tal questão não teria a ver, portanto, com o trabalho de sociólogos e cientistas políticos ?
Ao levantarmos tais temas queremos colocar em análise uma série de questões que, sem dúvida, têm sido encobertas e mesmo escamoteadas. Ou seja: por que tem se falado somente sobre a violência chamada “ doméstica” , e não da institucionalizada ? Por que há queixas sobre o silêncio e a falta de informações sobre a violência dita “doméstica”, quando , com relação às violências praticadas por agentes do Estado, este mesmo silêncio e essa mesma falta de informações partem das próprias autoridades constituídas que, ao mesmo tempo, dizem apoiar e incentivar campanhas contra a chamada “violência doméstica” e ocultam a violência praticada por seus agentes ? Para quem essas campanhas, esses manuais vêm sendo, efetivamente, dirigidos ? Que segmentos sociais , em especial, se quer atingir e que locais se quer excluir, quando se define maus tratos como:
“uso da força física de forma intencional, não-acidental, praticada por pais, responsáveis, familiares ou pessoas próximas da criança ou adolescente, com o objetivo de ferir, danificar ou destruir esta criança ou adolescente, deixando ou não marcas evidentes” (Deslandes, 1994, Apud FIOCRUZ, 2001, p.11,12, grifos meus).
É importante que todos os afetados pela violência, qualquer que seja ela, qualquer que seja a inserção de classe da pessoa atingida, qualquer que seja o local onde ela aconteça, sejam efetivamente cuidados pelo Estado.
Em outubro de 1998, a Sociedade Brasileira de Pediatria instituiu a Campanha de Prevenção de Acidentes e Violência na Infância e Adolescência, lançando uma apelo aos profissionais de saúde, médicos e professores: em observância ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/90), têm a obrigatoriedade de denunciar os maus tratos, abusos e violências cometidas contra crianças e adolescentes. Por que tal obrigatoriedade, em todas as campanhas realizadas e nos manuais e guias confeccionados, refere-se somente à chamada “violência doméstica” ? Por que não se torna obrigatória para profissionais que trabalham em diferentes estabelecimentos policiais, prisionais e aos ligados aos jovens considerados “perigosos” a denúncia de maus-tratos, abusos e violências cometidos nesses locais contra pessoas (adultos, crianças e adolescentes) que estão ali sob a guarda do Estado? Por que isto não ocorre, não é tema de campanhas, não se encontra em manuais, não é mencionado no treinamento desses profissionais, em especial, nos daqueles que irão tratar desses que estão sendo guardados pelo Estado ? Por que isto não ocorre se, desde 1992, a ONU apresentou os “Princípios de Ética Médica Aplicáveis ao Pessoal de Saúde na Proteção de Pessoas Presas, Detidas Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes” ?
Isto não acontece por que são alguns desses profissionais os próprios autores das violências; e quando não as cometem, são ameaçados e intimidados para que não ocorram denúncias.
“Os agentes de segurança penitenciária, sempre em número deficitário nas prisões (e nos estabelecimentos para jovens “infratores”), continuam a ser investidos em regime de urgência na função e, portanto, antes de serem suficientemente treinados. Sua aprendizagem continua se complementando através do processo de transmissão oral dos funcionários mais antigos para os mais recentes o que perpetua a cultura da violência (…). Os Institutos Médicos Legais continuam vinculados à polícia (Secretarias Estaduais de Segurança Pública)e, com frequência é o próprio agressor quem conduz a vítima da tortura para exame, geralmente de madrugada e, não sem antes submetê-lo a toda sorte de ameaças e após circular com ele durante horas na caçapa da viatura. Dessa maneira, a tortura no Brasil continua a ser usada sem a menor parcimônia nas dependências policiais e carcerárias e continuam a ser rotineiros, em todo país, os casos de morte sob custódia.” (Kolker, 2001, p.2 e 3)
Por que, então, as capacitações para funcionários e profissionais de saúde que trabalham em dependências policiais e carcerárias são raras ? Por que não fazem parte das políticas públicas, visto ser dever do Estado garantir a vida daqueles que estão sob sua guarda?
Uma outra questão que nos tem chamado atenção – aqui apenas esboçada, visto este texto ser um “ponta pé” inicial no assunto – é a forma como os profissionais de saúde, em especial, os psicólogos vêm trabalhando com a chamada “violência doméstica”.
Como já foi levantado, pela própria produção desse espaço como território do privado e pela própria construção das práticas psi em nosso país , algumas características têm marcado esta atuação. Têm estado fortemente presentes a intimização, o familiarismo e a psicologização. Ou seja, produzem-se e fortalecem-se os espaços individualizantes, o “modo de ser indivíduo” (Barros, 1995) tão caro ao capitalismo e, com isto, despublicizam-se e despolitizam-se tais trabalhos. Tudo parece girar em torno de determinadas características individuais, psicológico-existênciais e familiares dos sujeitos envolvidos em tais violências, características estas pensadas como naturais e da essência desses conflitos. Ou seja, são percebidos em abstrato, como “coisas em si” e, portanto, a históricas.
Que efeitos tais práticas, tais formas de se pensar e atuar sobre o problema da violência têm produzido entre nós ?
Concluindo …
Participar de uma série de debates junto a outros companheiros perante o Comitê Contra à Tortura da ONU permitiu que tais questões pudessem começar a ser formuladas.
Constatamos que a relação entre pobreza e criminalidade – disseminadas por todo o século XX, hoje atualiza-se e está presente nas falas daqueles que defendem a militarização da segurança pública, temerosos pelas ondas de violência que os meios de comunicação alardeiam. Está presente quando acreditamos que é uma realidade vivermos em uma “guerra civil” e que é natural que suspeitos – porque pobres – sejam torturados e até desapareçam. Tais crenças têm acompanhado ao longo do último século – pelo menos – os pensamentos, percepções, sentimentos e comportamentos dos brasileiros. Por isso não nos espantamos quando somente, em 1988, a tortura é oficialmente colocada como crime em nossa
Constituição e, quase 10 anos depois, em 1997, é tipificada.
Se hoje não temos mais os suplícios públicos onde se aplicava a Lei de Talião temos, através do silenciamento de uns e dos aplausos de outros, uma nova lei emergindo e funcionando eficazmente. Uma nova Lei de Talião que, ao arrepio das leis vigentes nos países “civilizados” e com o beneplácito e estímulo de suas autoridades, é aplicada a todos os pobres, porque suspeitos e, portanto, considerados culpados. Uma nova “Doutrina de Segurança Nacional” que tem hoje como seu “inimigo interno” não mais os opositores políticos, mas os milhares de miseráveis que perambulam por nossos campos e cidades. Os milhares de sem teto, sem terra, sem casa, sem emprego que, vivendo miseravelmente, põem em risco a “segurança” do regime. Daí, a urgência em produzir subjetividades que percebam tais segmentos como perigosos e, potencialmente, criminosos para que se possa em nome da manutenção/integridade/segurança da sociedade não somente silenciá-los e/ou ignorá-los – o que já não é mais possível – mas eliminá-los, exterminá-los através da ampliação/fortalecimento de políticas de segurança públicas militarizadas que apelem para a lei , a ordem e a repressão
Entretanto, apesar do poderio, força e enraizamento em muitos corações e mentes dessa nova Lei de Talião há linhas de fuga a serem construídas. Há questões que precisam ser esclarecidas, trazidas à luz e desconstruídas demonstrando-se que não são eternas, ahistóricas e necessárias. São formas de pensar, perceber, sentir e agir produzidas pelas diferentes práticas dos homens que podem ser mudadas, transformadas em subjetividades voltadas para a vida, para potencializar determinadas formas de existir neste mundo que, de um modo geral, têm sido desqualificadas, estigmatizadas, negadas e mesmo exterminadas.
Cecília M ª B. Coimbra
Representante do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ nas reuniões com o Comitê Contra a Tortura da ONU, em maio de 2001.
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