“Lembra daquele tempo
Que sentir era
A forma mais sábia de saber
E a gente nem sabia?.”
(Alice Ruiz)
Trazer um tempo vivido intensa e ativamente, de forma um tanto frenética, pois tudo nos parecia urgente de ser realizado, sem cair em uma espécie de saudosismo conservador, é um desafio. Desafio que aceito enfrentar ao tentar trazer alguns fragmentos de uma história que nunca será somente minha, mas de uma geração que generosamente sonhou, ousou, correu riscos e, como a peste, foi massacrada e exterminada. Uma geração que, nos anos 60 e 70, apaixonadamente tentou marcar suas vidas não pela “mesmice”, pelo instituído, pela naturalização, mas ao contrário, pela resistência, pela desmistificação, pela criação de novos espaços.
Em 1962, aos 21 anos, quando cursava História, na antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (FNFI da UB), atual UFRJ, entrei para o então clandestino Partido Comunista Brasileiro (PCB). Pertenci aos seus quadros de base até 1967, quando, já discordando de sua linha política, comecei a participar de alguns encontros na então chamada Dissidência do PC na Guanabara (DI).
Fiz parte de uma geração de jovens estudantes e intelectuais que viveu intensamente o alegre e descontraído início da década de 60. Naquele período fortaleceram-se diferentes movimentos sociais que se voltavam para a “conscientização popular”. Anos marcados pelos debates em torno do “engajamento” e da “eficácia revolucionária”, onde a tônica era a formação de uma “vanguarda” e seu trabalho de “conscientizar as massas” para que pudessem participar do “processo revolucionário”. A efervescência política, o intenso clima de mobilização e os avanços na modernização, industrialização e urbanização que configuravam aquele período traziam, necessariamente, as preocupações com a participação popular.
Ressoavam muito próximos de nós os ecos da vitoriosa Revolução Cubana, que passou a embalar toda uma juventude e grande parte da intelectualidade latino-americana, como o sonho que poderia se tornar realidade.
E, veio o golpe civil-militar (1964)[1] e o golpe dentro do golpe (AI-5, em 1969), quando a ditadura consolidou a sua forma mais brutal de atuação através de uma série de medidas como o fortalecimento do aparato repressivo com base na Doutrina de Segurança Nacional. Silenciava-se e massacrava-se toda e qualquer pessoa e/ou movimento que ousasse levantar a voz: era o terrorismo de Estado fortalecendo-se.
Naqueles anos aproximei-me de alguns militantes do movimento estudantil – embora já fosse professora de História, continuava na Universidade fazendo a graduação em Psicologia – e participei de alguns encontros do que, logo depois, viria a se constituir como MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Como tinha vida legal, estava casada e tinha um filho, passei a fornecer infraestrutura e apoio a vários companheiros que já estavam, em 1968 e 1969, na clandestinidade, militando em organizações clandestinas e/ou presos.
Em setembro de 1969, quando do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, antes e após a ação, abriguei em minha casa, à Rua Monsenhor Jerônimo, nº 776, aptº 104, no Engenho de Dentro, alguns companheiros que participaram do sequestro: Franklin Martins, José Roberto Spiegner (assassinado em fevereiro de 1970 pela repressão) e Fernando Gabeira, dentre outros.
Através de uma denúncia anônima, vinda do CENIMAR, minha casa esteve monitorada por cerca de um mês, em julho/agosto de 1970, sem que eu sequer desconfiasse.
Em 26/08/1970, à tardinha, o Serviço de Buscas do DOPS/RJ invadiu minha residência, onde apreendeu dezenas de livros e alguns documentos. Fui presa e levada, junto com meu marido José Novaes, pelo inspetor Jair Gonçalves da Mota – que parecia chefiar a operação – para a Sede do DOPS/RJ, à Rua da Relação.
Ao chegar ao 2º andar do prédio do DOPS/RJ, recebeu-nos, com gritos, impropérios e palavrões, o diretor do DOPS/RJ à época, o delegado Mário Borges que me intimidava aos berros: “Fale, sua puta comunista, com quantos você trepou?”.
Fui separada de meu marido, sendo levada para uma sala – naquele 2º andar – onde dois homens que não consegui identificar (um deles era alto, forte, mulato, com cabelos pretos, curtos e bem encaracolados) – revezavam-se no interrogatório. Queriam que eu escrevesse sobre minhas atividades “subversivas” e informasse a origem de um dos documentos encontrado em minha residência. Fiquei sob interrogatório, sendo agredida verbalmente, ininterruptamente, por toda aquela noite e parte do dia seguinte.
À tarde desse segundo dia, 27/08, fui levada para o Depósito de Presas São Judas Tadeu, que ficava no andar térreo do prédio do DOPS. Lá, dormi, na noite de 27 para 28/08, em uma pequena cela – separada das demais presas que eram comuns. Nesta pequena cela encontravam-se algumas presas políticas, entre elas Germana Figueiredo e Maria Auxiliadora Lara Barcelos[2].
À tarde do dia 28/08, fui colocada em uma viatura oficial da polícia civil, junto com José Novaes e uma amiga, também presa, Arlete de Freitas. Antes disso, ao sair do presídio e ser levada novamente para o 2º andar, em uma sala, fui interrogada pelo agente do DOPS, Humberto Quintas. Soube do nome, pois esta pessoa havia sido vizinha de Arlete, minha amiga, que já estava presa no DOPS. Na ocasião, vi, em uma dessas salas, um colega da FNFi, Abel Silva e Sônia, sua mulher à época, na condição de presos.
Algemada e encapuzada, fui levada para o DOI-CODI/RJ, no quartel da Polícia do Exército, à Rua Barão de Mesquita, na Tijuca.
Falar daqueles três meses em que fiquei detida incomunicável sem um único banho de sol ou qualquer outro tipo de exercício é falar de uma viagem ao inferno: dos suplícios físicos e psíquicos, dos sentimentos de desamparo, solidão, medo, pânico, abandono, desespero; é falar da “separação entre corpo e mente”, como afirmava Hélio Pellegrino.
A tortura não quer “fazer” falar, ela pretende calar e é justamente essa a terrível situação: através da dor, da humilhação e da degradação tentam transformar-nos em coisa, em objeto. Resistir a isso é um enorme e gigantesco esforço para não perdermos a lucidez, para não permitir que o torturador penetre em nossa alma, em nosso espírito, em nossa inteligência.
Em especial, a tortura perpetrada à mulher é violentamente machista. Inicialmente são os xingamentos, as palavras ofensivas e de baixo calão ditas agressiva e violentamente como forma de nos anular.
Chegando ao DOI-CODI/RJ, um prédio ao final do pátio da PE, no andar térreo, retiraram-me as algemas, o capuz e fui identificada. Ocasião em que me retiraram relógio, anel, aliança, cordão e cinto e soube, então, estar em um quartel do Exército.
Novamente encapuzada, levaram-me para o andar superior (subi dois lances de escada). Fiquei em uma cela e, após retirarem-me o capuz, entrou um homem que, sem dizer o nome, identificou-se como médico, tirou minha pressão e perguntou-me se era cardíaca. Não possuía qualquer identificação, embora estivesse uniformizado. Mais tarde, ao esquecer um receituário em minha cela, soube tratar-se de Amílcar Lobo, conhecido como Dr. Carneiro, médico e aspirante a psicanalista.
Poucos minutos depois, fui levada encapuzada para o andar térreo, para uma sala que ficava à direita, no final de um corredor: a sala de torturas, conhecida como “sala roxa”. De capuz, tive minhas roupas arrancadas e meu corpo molhado. Fios foram colocados e senti os choques elétricos: no bico dos seios, vagina, boca, orelha e por todo o corpo. Gritavam palavrões e impropérios, chutavam-me. Já haviam identificado o documento encontrado em minha residência: era do MR-8 e da ALN, quando do sequestro do embaixador norte-americano, no ano anterior. Naquele mês de agosto, havia sido sequestrado o embaixador alemão e os serviços de informação pouco sabiam a respeito. Acharam que por ter em mãos aquele documento, eu teria alguma informação sobre o sequestro do embaixador alemão. Exigiam-me, através das torturas, que eu falasse o que não sabia! Em dado momento, não sei precisar quanto tempo decorreu (encontrava-me sem controle da bexiga e do ânus), tiraram-me o capuz e vi vários homens. Mais tarde, identifiquei alguns, como sendo o major da PM Riscala Corbaje, conhecido como Dr. Nagib, o agente da polícia civil Luiz Timótheo de Lima, conhecido como Padre e Jair Gonçalves da Mota, o mesmo que havia participado das buscas em minha residência com a equipe do DOPS/RJ. Havia ainda, um sargento do Exército – o único que usava farda – baixo, gordo, negro, que não consegui saber quem era. Extremamente agressivo, chutava-me, empurrava-me e esmurrava-me.
Fui levada de volta para a cela por um cabo do Exército – usava uniforme, era bem moreno, altura mediana, de porte médio tendendo para magro, cabelos lisos e pretos, parecendo nordestino – era chamado de cabo Gil e, frequentemente, cantava quando vinha, balançando as chaves, nos levar para algum interrogatório e/ou tortura: “Receba as flores que eu te dou / Em cada flor um beijo meu (…)”.
Ao chegar à cela, deparei-me com Arlete de Freitas que ficou ali presa comigo por alguns dias. No dia seguinte, não sei precisar bem, fui novamente levada para a sala de tortura, no andar térreo, e lá vi parte da tortura que meu marido sofria: choques elétricos em todo o seu corpo. Seus gritos acompanharam-me durante anos.
Era muito comum esta tática quando algum casal era preso, além de se tentar jogar um contra o outro em função de informações que pseudamente algum teria passado para os torturadores… “Será mesmo que ele falou isso?”… Era necessário um esforço muito grande para não sucumbirmos…”Se falou está louco!”… era o meu argumento, repetido à exaustão.
Continuavam querendo saber sobre o sequestro do embaixador alemão. Fui novamente despida, e colocada numa sala que ficava ao lado da de torturas. Fui amarrada numa cadeira e colocaram um filhote de jacaré sobre meu corpo. Desmaiei.
Queriam também saber sobre alguns postais encontrados em nossa casa, enviados por amigos que estavam exilados na França. Acusavam-nos de fazer parte do grupo que encaminhava denúncias sobre a ditadura para o exterior.
Os guardas que me levavam, sempre encapuzada, percebiam minha fragilidade… Constantemente praticavam vários abusos sexuais… Os choques elétricos no meu corpo nu e molhado eram cada vez mais intensos… E, eu me sentia desintegrar: a bexiga e o ânus sem nenhum controle… “Isso não pode estar acontecendo: é um pesadelo… Eu não estou aqui…”, pensava eu. O filhote de jacaré com sua pele gelada e pegajosa percorrendo meu corpo… “E se me colocam a cobra, como estão gritando que farão?”… Perco os sentidos, desmaio…Inicialmente me fizeram acreditar que nosso filho, de 3 anos e meio (José Ricardo Coimbra Novaes) e meu irmão menor (Custodio José Bouças Coimbra)[3] haviam sido entregues ao Juizado de Menores, pois minha mãe e meus irmãos estariam também presos. Foi fácil entrar nessa armadilha, pois vi meus três irmãos e minha cunhada no DOI-CODI/RJ (Fernando Bouças Coimbra, Delfim Bouças Coimbra, Emídio Tadeu Bouças Coimbra e sua esposa Dora Cristina Rodrigues Coimbra, casados há um mês). Estes últimos tiveram sua casa invadida e vasculhada. Sem militância política, foram sequestrados da casa de minha mãe, presos e torturados: tinham uma “terrorista” como irmã… Esta era a causa que justificava todas as atrocidades cometidas… A casa de minha mãe havia sido invadida e várias pessoas que lá estavam foram presas e levadas para o DOI-CODI/RJ como meus três irmãos, minha cunhada, meu primo Fernando Antunes Coimbra e meu cunhado João Novaes. Após a casa de minha mãe ser invadida, fizeram uma mis-en-scène em minha residência. Cercaram o quarteirão e metralharam a porta do apartamento, retirando de lá vários exemplares de jornais, afirmando para os vizinhos que se tratava de material “subversivo”. Já estávamos presos há 3 dias.
O barulho aterrorizante das chaves nas mãos de algum soldado que vinha abrir alguma cela… “Quem será dessa vez”… Quando passava por nossa cela e ia adiante respirávamos aliviadas. Alívio parcial, pois pensávamos: “quem estará indo para a “sala roxa” dessa vez”? Esse farfalhar de chaves me acompanhou por muitos anos.
Às 18 horas faziam o “confere” em cada uma das celas: alguns soldados, um oficial – um deles orgulhosamente exibia um anel com uma caveira em cima de duas tíbias, símbolo do famigerado Esquadrão da Morte – e um enorme cão policial nos farejava.
De madrugada, sistematicamente, abriam violenta e estrondosamente as celas e lançavam fortes luzes em nossos olhos, ordenando-nos, aos gritos, que nos levantássemos, pois um novo “confere” iria ser feito… De novo, o cão policial nos farejava…
Em outro momento, ainda em final de agosto, não sei precisar o dia, à noite, fui colocada algemada e encapuzada em um carro de passeio. Quando saltei do carro, sem capuz e algemas, reconheci o prédio, em Copacabana, onde moravam meus amigos Marlene Paiva e Marcos Franco, já falecidos. Subimos no elevador e, diante da porta do apartamento, os homens – eram quatro, os que me levavam -, sacaram suas metralhadoras e tocaram a campainha. Quando Marcos atendeu, empurraram-me para dentro. Vistoriaram a casa e os levaram presos comigo para o DOI-CODI/RJ. Anteriormente vinculados ao PCB, naquela época não tinham militância política. Voltei no carro sem capuz e reconheci o local onde estava presa: a PE da Rua Barão de Mesquita.
Chegando lá, algum tempo depois, fui levada para “assistir” Marlene e Marcos separadamente, serem torturados. Reconheci entre seus torturadores o Dr. Nagib (Riscala Corbaje) e aquele que chamavam de Padre (Luiz Timótheo de Lima).
Nos dias que se seguiram, toda vez que vinham buscar-me na cela para novo interrogatório, encapuzavam-me e as sevícias e abusos sexuais aconteciam por parte dos soldados que me levavam. Num desses dias, ainda em final de agosto, vi e falei com uma amiga, que não sabia tinha sido presa também, Maria Helena do Nascimento Barbosa.
Nas noites em que não tinham “trabalho” para ser feito, algumas equipes de torturadores para “passar o tempo” nos chamavam, apenas as mulheres. Nunca sabíamos se era para novas sessões de tortura, para alguma acareação ou para um “bate papo”, como eles denominavam essas “conversas”. Nelas, alguns deles tentavam nos convencer de que as torturas eram necessárias e nos perguntavam: “vocês falariam alguma coisa se não houvesse essas “pressões”?”… Nesses “bate-papos” tentavam ainda nos jogar umas contra as outras ao insinuarem sobre alguma de nós: “mas vocês têm certeza da militância dela? Vocês confiam mesmo nela?”…
A partir de setembro, fui transferida para uma cela maior – conhecida como Maracanã – onde estive com várias presas: Dulce Pandolfi, Carmela Pezzuti, Tânia, Glória Márcia Percinotto, três moças ligadas à JOC (Juventude Operária Católica) de Volta Redonda e Maria do Carmo Menezes (grávida de cinco meses)[4], dentre outras.
Numa madrugada fui retirada da cela, levada para o pátio, amarrada, algemada e encapuzada… Aos gritos diziam que ia ser executada e levada para ser “desovada” como em um “trabalho” do Esquadrão da Morte… Acreditei… Naquele momento morri um pouco… Em silêncio, aterrorizada, me urinei… Aos berros, riram e me levaram de volta à cela… Parece que, naquela noite, não tinham muito “trabalho” a fazer … Precisavam se ocupar…
Algumas mulheres que demonstravam uma maior resistência às torturas eram “premiadas”: sempre estavam sendo chamadas para os “bate-papos” de madrugada e eram utilizadas como cobaias em aulas para novos torturadores. Caso de uma companheira de cela, Dulce Pandolfi, relatado no livro Brasil Nunca Mais, coordenado pela Arquidiocese de São Paulo.
Em outro momento, logo após a prisão de Marcos e Marlene, conheci um outro torturador: baixo, forte, cabelos claros, tendendo para o ruivo, com bigodes: era João Câmara Gomes Carneiro que, soube, tinha vindo de Minas Gerais. Reclamava dos gritos de Marlene, que estava sendo torturada, e da menstruação de Arlete, pois havia manchado sua capa de chuva ao sentar na cadeira onde ela estivera sendo interrogada.
Noutra ocasião, fui levada encapuzada para uma sala que ficava no andar térreo, mas do lado oposto ao da sala de torturas. Parecia o gabinete de alguma autoridade. Lá, um oficial do Exército – estava de farda, mas sem qualquer identificação, como todos os demais – louro, alto, robusto, que, posteriormente, identifiquei como sendo Alfredo Magalhães, me interrogou sobre o sequestro do embaixador alemão. Nesta sala havia um quadro com a caveira e as tíbias cruzadas e as iniciais EM, símbolo do Esquadrão da Morte.
Durante o período de minha detenção – de 28/08 a 11/11/1970 – não tive direito a um só banho de sol, nem contato com qualquer advogado. Quase um mês depois da prisão, assinei, na própria cela, uma ordem de prisão preventiva. Somente a partir daí, pude receber cartas de minha família – censuradas, pois eram cortados os trechos considerados “perigosos”.
No DOI-CODI/RJ estavam proibidas quaisquer visitas e a entrada de quaisquer publicações – livros, revistas, jornais.
Além das pessoas presas já mencionadas, algumas outras foram vistas por mim no DOI-CODI/RJ: Alberto José Barros da Graça, Luiz Sérgio Dias, já falecido, (amigos e companheiros do PCB e da FNFi), Jorge Leal Gonçalves e Eduardo Leite, o Bacuri. Este último, já quase não andava de tão torturado. Era carregado por dois soldados[5]. Jorge Leal Gonçalves é desaparecido político. Foi visto por mim, em outubro de 1970, não sei precisar o dia, quando era levado para ser torturado. Eu saia da “sala roxa” e ele estava entrando. Muito magro, bastante machucado com marcas roxas no rosto e nos braços. Cruzamos na entrada da sala de torturas; nos olhamos… Seu olhar me acompanhou por muitos anos…
Parece que foi ontem… Esta e muitas outras histórias continuam em nós, marcadas a ferro e fogo… Fazem parte de nossas vidas… Falar delas é ainda duro e difícil… Parece realmente que foi ontem, hoje, agora… Envolvemo-nos, desde então, direta e/ou indiretamente na luta contra a ditadura. Foi, sem dúvida a experiência – não só a da tortura, mas a da militância naqueles anos – mais visceral de toda a minha vida e que me marcou para sempre. Nós mulheres que atuamos – na vanguarda ou na retaguarda, não importa – naquele intenso e terrível período, derrubamos muitos tabus, vivemos visceralmente a presença assustadora da morte, a ousadia de desafiar e enfrentar um Estado de terror, a coragem de sonhar e querer transformar esse sonho em realidade. Acreditávamos… Sim, queríamos um outro mundo, outras relações, outras possibilidades… e queremos hoje.
Alguns torturadores foram por mim reconhecidos:
1) Major da PM RiscaleCorbaje era o chefe de uma das equipes do DOI-CODI/RJ em 1970 e 1971. Conhecido como Dr. Najib era tenente-coronel, em 1986, quando exercia a função de Assessor de Segurança do BANERJ.
2) Luiz Timótheo de Lima, era agente da Polícia Federal/RJ e lotado no DOPS/RJ, com atuação no DOI-CODI/RJ, em 1970.. Conhecido como Padre foi, nos anos 80, segurança do Hospital do Câncer, da Câmara de Vereadores (gabinete Romualdo Carrasco) e, em 1986, trabalhava no Setor de Segurança da Mesbla.
3) João Câmara Gomes Carneiro era major da Cavalaria do Exército e serviu na 12ª RI-BH, onde comandava sessões de tortura, em 1968 e 1969. Em 1969 e 1970 comandou o DOI-CODI/RJ. Era conhecido como Magafa. Em 1975, foi para a reserva, indo residir em SP, tendo em 1987 uma empresa de segurança.
4) Ailton Guimarães Jorge era capitão intendente do Exército. Serviu na PE da Vila Militar/RJ, de 1968 a 1970 e no DOI-CODI/RJ de 1970 a 1974. Conhecido como Dr. Roberto, esteve envolvido em contrabando. Foi processado e absolvido. Em 1975, foi para Reserva e tornou-se banqueiro do bicho.
5) Alfredo Magalhães, oficial da Marinha. Era do CENIMAR, em 1970 e 1971. Apesar de reformado continuou ligado àquele órgão. Conhecido como Dr. José, Dr. Paulo, Comandante Mike e Alemão.
6) Almicar Lobo Moreira da Silva, tenente médico do Exército. Serviu no DOI-CODI/RJ, de 1970 a 1974. Também era conhecido como Dr. Carneiro.
7) Ary Pereira de Carvalho era tenente coronel da Cavalaria do Exército. Serviu na PE da Vila Militar/RJ e no DOI-CODI/RJ de 1970 a 1974. Em 1985, era adido militar na Embaixada do Brasil em Buenos Aires.
8) Mário Borges era Comissário da Polícia Federal, lotado no DOPS/RJ desde 1966. Era conhecido como Capitão Bob.
9) Jair Gonçalves da Motta era inspetor da Polícia Federal, lotado no DOPS/RJ. Também atuou no CISA, em 1971. Era conhecido como Capitão. Tinha livre trânsito no DOI-CODI/RJ.
10) Humberto Quintas era funcionário do DOPS/RJ desde 1969.
11) Francisco Demiurgo Santos Cardoso, conhecido como “major Demiurgo”. Era Major na Infantaria do Exército, lotado no DOI-CODI/RJ em 1969 e 1970. Nos anos 70 foi transferido para o Comando Militar da VIª RM de Salvador (Bahia).
Solicito, por fim, que as Comissões Nacional e Estadual da Verdade/RJ chamem estas pessoas acima assinaladas para prestar depoimento sobre os crimes cometidos dos quais sou testemunha.
Rio de Janeiro, 13 de junho de 2013
Cecilia Maria Bouças Coimbra
*Cecília Maria Bouças Coimbra, brasileira, casada, nascida em 16 de março de 1941, no hoje estado do Rio de Janeiro, psicóloga, professora aposentada da Universidade Federal Fluminense, moradora à Praia de Botafogo, 22, aptº 502 – Botafogo, RJ, CEP: 22250-040, identidade nº 01731703-3 (IFP/RJ), vem prestar informações a estas Comissões da Verdade sobre sua prisão arbitrária e sobre as torturas sofridas nos meses em que esteve detida no DOPS/RJ e no DOI-COIDI/RJ, onde foi torturada por agentes do Estado brasileiro, no período de 26 de agosto a 11 de novembro de 1970.
Notas
[1]Em 01 de abril de 1964, no CACO (Centro Acadêmico Cândido de Oliveira) da Faculdade Nacional de Direito, da atual UFRJ, cerca de 200 estudantes universitários concentravam-se para resistir ao golpe. Foram cercados e atacados pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC), grupo paramilitar que, com rajadas de metralhadora e bombas de gás lacrimogêneo, gritavam que iriam matá-los. Eu estava neste grupo e fomos salvos pelo Capitão de Cavalaria do Exército, Ivan Cavalcanti Proença que logo depois foi preso e expulso do Exército.
[2]Já falecidas. A primeira, médica, morreu alguns anos após sua libertação. Foi, inclusive, testemunha contra o médico psicanalista Amílcar Lobo, que trabalhava, à época, no DOI-CODI/RJ. A segunda, estudante de medicina, foi trocada pelo embaixador suíço sequestrado Giovanni Enrico Bucher e banida em janeiro de 1971. Saiu do país e, emocionalmente perturbada pelas torturas sofridas, suicidou-se na Alemanha, em 1973. Todas elas fizeram o caminho inverso ao meu: estavam no DOPS, depois de já terem passado pelo terror do DOI-CODI/RJ.
[3] Este tinha 16 anos e foi acordado com uma metralhadora no peito sendo interrogado se o pequeno laboratório de fotografia que tinha em casa era para tirar documentos falsos. Queriam os negativos das fotos.
[4] Esta ex-presa política recebia, em nossa cela, um soro intravenoso, dado pessoalmente pelo ex-médico Amilcar Lobo. Logo depois descia para ser torturada com choques elétricos. Ao chegar em nossa cela, Maria do Carmo estava com o rosto totalmente deformado.
[5] Foi assassinado em São Paulo, em dezembro de 1970, após 109 dias de prisão e tortura.